× Capa Textos Áudios Perfil Livro de Visitas Contato
SOLANO BRUM,O PÁSSARO CANTOR
AMOR PERFEITO
Textos

UMA MENINA DE SORTE

                                          Um conto de Solano Brum

As histórias só existem porque as contamos. Esclareço que esta história é uma obra de ficção, de certo modo, contada a minha pessoa e que, dando um ponto ali outro aqui, acrescentei muitos pontos, por isso, qualquer semelhança com nomes, pessoas ou objetos, bem como cidades e logradouros, é mera coincidência. A história sobre NATÁLIA, é narrada por sua neta ROBERTA. Todavia, para ficar bem entendido, primeiro, ela sentiu-se na obrigação a nos contar o seu presente. Assim, ela começa:

OS ACONTECIMENTOS SÃO HISTÓRICOS REAIS; A HISTÓRIA, NEM TANTO.

Morávamos numa enorme casa, cuja porta da frente, por seu tamanho se destacava. Muito pesada, apenas uma de suas bandas podia ser aberta. Pela beleza e detalhes dos desenhos na madeira de lei, servia, tão somente, para as honras da casa. Dentro do casarão, desde os tempos em que fora adquirida por minha querida Avó NATÁLIA, os móveis eram antigos os quais foram comprados com esmero e meticulosamente decorados por ela. Desde então, tudo era muito bem conservado no verniz. Tanto as cortinas quanto os porta-retratos, eram cuidadosamente verificados de tempos em tempos, por sua governanta. Os enfeites de prata sobre os móveis reluziam e se destacavam quando eram acesas as luzes dos dois abajures cheios de pontas de cristais, os quais, pendiam no vão da sala como os badalos de sinos dentro da abóbada de uma igreja. A única vez que os vi serem limpos, eu já havia completado doze anos e muito me intrigou. A prudência no manejo à limpeza era imperativo. Os mínimos detalhes eram vistoriados por ela e nada, mas nada mesmo, ficava fora do lugar. Os dois valorosos abajures foram importados, quando, da construção do casarão, há tempos atrás, e a mesma Empresa se prontificou em montá-los e limpá-los, quando da exigência do proprietário. Contou-nos que, o casarão fora adquirido somente com esses enfeites, como dois pêndulos gigantes. Foi a única vez que os vi serem limpos e o bastante para me deixar encabulada. Minha avó era uma Senhora distinta, cheia da grana, pois, além de receber por sua aposentadoria, era proprietária de várias casas na Tijuca, todas alugadas e quando a expansão imobiliária avançou para os céus, começou a comprar apartamentos com sua bela poupança adquirida ao longo dos anos, por seus esforço. No princípio, a minha bisa – sua mãe - juntamente com dois empregados e uma cozinheira, a ajudara a tomar conta do menino, - meu pai. Quando ele completou treze anos, a bisa voltou para a sua cidade. Desde então, com sua destreza como Pintora e seu bom salário como arquiteta, passou a conviver com a antiga cozinheira e duas cooperadoras para as diversas tarefas. Sempre a vi rodeada de homens galanteadores da época bem como os demais do seu nível intelectual, porém, seu quarto, apesar do luxo, permanecia um cômodo um tanto lúgubre em relação à solidão; ela chegava de carro com os amigos e quando das muitas vezes em que os recebia para um bate-papo informal como final de noite, com excêntrica cordialidade, despedia-se de todos, um por um, no hall da porta. As vezes, no final da escada, eu ficava olhando-os, tarde da noite, interessada nas conversas, mas pouco ouvia. Outras vezes ouvia risos furtivos e paradas abruptas nas conversas, quando da presença de sua atendente, servindo-os com algum aperitivo ou deliciosos salgadinhos. Depois, eu voltava para o meu quarto enquanto que ela, para o seu, tão solitária quanto triste. Eu cresci vendo a casa muito bem conservada, apesar de ser um antigo Casarão. No primeiro pavimento, além da sala, haviam três quartos. Um deles, o de frente para a rua era de minha avó e o contíguo, também de frente para a rua, de Papai e Mamãe. O terceiro quarto, de hospede (assim dizia vovó) ficava nos fundos, sempre ventilado, pois, havia um pequeno quintal onde brotavam samambaias, orquídeas e roseiras, que, na época, eram bem cuidadas por ela, depois, por minha mãe e agora, pelo jardineiro que por aqui aparece vez por outra. Mas, corre por entre os canteiros, - se é que, neste exato momento em que conto esta história de minha querida avó, o referido casarão não fora demolido pela ganância das expansões Imobiliárias -, um ar fresco, que desce do morro defronte. A rua sempre foi de ares frescos, pois, segue até ao pé do maciço.
O andar de cima, também sustentava a mesma elegância. Por uma escada em madeira de lei, com meia curva muito bem desenhada e conservada pelas constantes manutenções a verniz, chagava-se ao tão esquecido pavimento, o qual ostentava também três quartos. Todavia, apenas um de frente para a rua, e, os dois outros, voltados para o jardim dos fundos. Depois que completei a idade de treze anos, para lá me mudei, - igualzinho a meu pai - motivada pela razão de querer estar só, sem ter que ouvir os lamentos de minha Avó ou os ruídos que vinham da cozinha. Só a arrumadeira o visitava. De lá, por sua única janela, eu apreciava toda a extensão da rua.
Tudo cheirava a antiguidade, porém, meu pai cresceu naquele ambiente, casou-se, e, do quarto de cima, passou a ocupar o de baixo, ao lado de vovó. Nesse casarão, eu também fui criada até realizarmos a tão famosa mudança, que contarei mais adiante.
Estudei em bons colégios e antes de abrir os olhos e vislumbrar meu futuro, eu já estava dentro de uma repartição Federal.
Mas foi antes... Antes mesmo de terminar o Colegial; antes mesmo de nos mudar para um lindo e chiquérrimo Prédio, dentre os tantos que perfilavam, na época, e, continuam a embelezar a orla marítima do Flamengo, que eu, uma amenina muito curiosa, resolvi desobedecer minha querida avó e subir no sótão desta antiga casa. Para quê, não o sabia dizer, mas minha curiosidade sempre se deparava com uma porta bem trancada e que ninguém fazia uso dela. Onde daria? Por quais razões ela existia? Cresci imaginando ser uma passagem secreta, dando asas a imaginação sobre o que poderia haver por detrás dela.
Até descobrir que era uma porta que dava acesso ao andar de cima, demorou muito. Por precaução, diziam-me haver do outro lado uma assombração; outras vezes, que era a morada de muitas aranhas venenosas; e, tantos eram os “não pode”, que gerou dúvidas em minha cabeça. Certa vez, quando meu pai e minha mãe foram levá-la ao médico, já sabendo da demora, resolvi conhecer o tão famoso sótão, o qual eu pedia a Vovó, enquanto que ela, sempre se esquivava contando-me histórias sobre o que se poderia encontrar ao adentrar àquele porão; ou, outras vezes, subestimando minha inteligência de criança, inventava horários de abri-la, - “porém...”, - dizia ela - “primeiro temos de descobrir qual a chave para abri-la...” e eu permanecia olhando-a como que extasiada por suas palavras fantasiosas e sonhava ante o desenrolar da trama criada por ela, ou, as vezes, ela, talvez, já cansada de tanto inventar desculpas, com ríspidas palavras, negava deixando escapar um veemente ponto final no assunto. Quando isso acontecia, eu me recolhia a um canto e fingia esquecer, para, tempos depois, voltar a insistir. Mas ela nunca a abriu para mim. Uma porta no término da primeira escada ao lado direito, era o que se via. Passava, aos olhos de quem atingia os degraus da escada, quase que despercebida. Vivia trancada. Inclusive, com um cadeado além da fechadura antiga. Eu passava, olhava-a e queria saber o que havia por detrás dela. “- Tem uma escada que nos conduz ao porão...” - dizia-me a arrumadeira, “- Mas, - completava - eu nunca a destranquei!”
Porém, já com idade de entender quase tudo, pensava: Se não tem nada de anormal, então, porque na porta, o cadeado e a fechadura, fechado-a rigorosamente? Havia, é claro, alguma coisa por lá que nos era proibido de ver. O cadeado era enorme e eu sempre o pegava e o examinava, mas, nada de abri-lo. Um dia, fui até à dispensa e encontrei, um moio de chaves, dependurado em um gancho, todas presas um aro de metal reluzente. Logo me veio a cabeça serem dos cômodos da casa; por certo, ali estaria a chave do cadeado e da porta tão cobiçada por mim. Todas eram diferentes uma das outras, senão, duas iguais. Eram cópias sobressalentes. Todos os quartos permaneciam com suas chaves nas fechaduras, então, porque aquelas duas estavam juntas? Imaginei logo que seriam da porta que dava acesso ao sótão e ao tentar tirá-las do aro reluzente, não me foi possível. Aliás, não consegui remover nenhuma delas, pois, o aro de metal reluzente tinha as pontas soldadas. Resolvi levá-lo comigo e justamente as que eu imaginei serem da porta, não emperrou. Abrindo-a, ela fez um chiado estranho o que me fez tremer. Uma estreita escada, reta e íngreme foi iluminada até sua metade, pela luz do hall da antessala. Antes de firmar meu pé no primeiro degrau, notei que havia um interruptor. Estiquei o braço e minha mão o alcançou. Era um modelo bem antigo e foi acionado para cima. A lâmpada, ao receber a força elétrica, deu um estalo e queimou-se. O susto foi tão grande que fiquei parada, quase que imóvel. Estava alta e não podia ser trocada naquele instante. Voltei a dispensa e apanhei uma lanterna e outra lâmpada. Subi os degraus com cautela, receando pisar em algum já apodrecido. Mas eram tábuas grossas e firmes. Logo cheguei ao topo. Fiquei vislumbrada. Estava diante de um salão amplo. Uma lâmpada pendia num fio. Com cuidado segurei-a e logo imaginei os tantos de anos que ela deveria estar ali, pendurada, pois, já haviam outras espécies mais modernas. O bocal, de louça, proporcionava sua durabilidade. Cuidadosamente fui torcendo-a e de repente, fez-se a luz no ambiente escuro, antes, iluminado apenas por uma claraboia na cumeeira do teto. Permaneci parada, vendo as teias de aranhas. Tive medo, mas, no espaço iluminado, haviam alguns móveis velhos e todos estava envoltos em lençóis brancos, empoeirados e amarelecidos. Era um quarto esquecido por todos da casa. Comecei a remexer em tudo que via. Revirava tudo e prestava atenção no que via ou lia, mas não via nada de interessante a não ser, as teias as quais eu ia desmanchando com o apoio da vassoura de piaçava. As cabeludas aranhas, as quais me foram severamente advertidas por todos, não apareciam. Apenas procurava algo para não sair daquele sótão em desvantagem sobre minha curiosidade. Fui pegando uma coisa aqui, outra ali e dei de cara com um baú, fechado, bem escondido na parte mais estreita do sótão. Quase não consegui retirá-lo de lá. Mas juntei forças e o arrastei até o meio donde a luz era mais forte. Tentei abri-lo e após alguns esforços, consegui. Nada de interessante. Revirei tudo. Alguns vestidos e um maço de correspondências na parte interna da tampa convexa, como se ali, jamais alguém as pudesse encontrar. Estavam bem amarradas com uma fitinha de seda azul. Endereçadas a minha avó, por um remetente distante – Alemanha. Quase tremi de medo por ter em minhas mãos aquele maço de correspondências, num total de seis. Uma delas, pareceu-me ser a última, pois, passei de relance os olhos na data, sem prestar atenção ao que lia. O que mais me impressionou foi o papel. Era diferente, como se fosse de linho e sem pautas cujo remetente, em sua escrita, não desviara um centímetro da linha superior. De uma extremidade a outra, a escrita seguia numa perfeita linha reta. A caligrafia encheu-me de inveja, pois, a minha, sempre foram garranchos, o que me deixava triste por estar sempre sendo chamada a atenção por minha mãe. Dava-se ao fato, a correria, em copiar os trabalhos do quadro; estudar; bem como escrever entre o trajeto da minha casa e a escola, sentada nos bancos dos bondes, como complemento da aula de poucas horas atrás. Eu estudava com esmero e copiava e marcava e passava a limpo e por mais que tentasse melhorar, mais os garranchos apareciam. Pareciam comuns e o que eu achava bom, era ruim, feio, até que, quando abri os olhos, já não conseguia escrever mais nada a não ser parecidos com hieróglifos e que só eu conseguia ler. Pois bem, não abri nenhuma delas, mas, esta última, eu pude ver quão cuidadoso fora o correspondente. Ainda amarradas, não pude ler a primeira frase, por ser o idioma Alemão, mas o cabeçalho tinha por data, o ano de mil novecentos e quarenta e oito.

“Meu Deus! Estamos no ano de mil novecentos e oitenta e quatro... Quanto tempo!” Espantei-me

Pois bem. Haveria de encontrar outras tantas coisas relacionadas à pessoa endereçada ou algum objeto valioso... Achei. Era algo envolto em plástico. Estava embrulhado e bem amarrado. Pela transparência vi que eram três livros. Nas letras góticas e escarlates podia-se ler: “MEU DIÁRIO”. Fiquei maravilhada. Sempre ouvia comentários sobre “diários secretos” e me veio à cabeça o de Enne Frank... Mas este, por certo, não se tratava – talvez – de uma revelação monstruosa como a dela – Pensei balançando a cabeça e espalhando os pensamentos para longe. Eu havia descoberto algo muito importante. Fiquei alguns minutos tentando coordenar minhas ideias e em como guardar os meus achados, não no mesmo lugar. Depois percebi que o dono havia subido até aquele recanto quando ainda jovem. Talvez, eu ainda nem fosse nascida. Fiquei matutando. Eu precisava guardá-los bem, pois, poderia haver um incêndio na casa... Balancei outra vez a cabeça cheia dos maus agouros e resolvi descer, trazendo-os comigo. Não eram livros pesados. Haveria de guardá-los num lugar de minha confiança. Lugar que eu entendia estar fora do alcance de qualquer um que visitasse, de surpresa, meu quarto – no caso, surpresa, entendia ser Papai ou Mamãe, pois, vovó não sobe mais as escadas, faz tempos... - Assim matutando, apaguei a única lâmpada pendente do teto, desci a escada, fechei a porta, passei a chave e tranquei o cadeado. Deixei os objetos antigos sobre a cama, saí fechando a porta a chave. Desta vez, resolvi trancar a porta e levar comigo a chave, o que não era de costume. Desci a escada central, desconfiada e passei pelo corredor e lá estava, sentada em uma cadeira, minha querida e sexagenária Avó, dona dos objetos até então guardados lá no sótão e que agora, certamente me pertenciam. Sua tez era macia e seus olhos revelavam uma luz mui tênue, entre a solidão e a tristeza – só depois de haver lido uma das cartas é que pude perceber, quão sofridos, solitários e tristes eram, porém, por quem ela havia se entregado a tamanha tristeza, jamais comentada à família, já não mais se encontrava entre nós. Não demorou muito e minha avozinha veio a falecer. Chorei muito pois a partir do momento em que descobri seu segredo, comecei a importuná-la sobre seu passado. As vezes ela me contava algumas coisas mas, certo dia, olhou-me com severidade e resolveu se emudecer. Contudo, o pouco que tirei dela me favoreceu e muito para que essa história fosse relatada por mim.

Quando nos mudamos, resolvi ser a primeira a chegar no novo endereço. Eu já contava com meus dezesseis anos. Era uma menina alta e as pessoas que me viam e que não me conheciam, apostavam nos dezoito anos ou mais.
O apartamento era muito espaçoso e meu pai o comprara a vista, após vender o casarão da Tijuca, em que fomos criados; primeiro ele, depois eu, o qual recebeu minha querida mãe após seu casamento. Velho casarão pertencente a uma Senhora solteirona, muito bem remunerada e com boa poupança conseguida através de seus trabalhos, que eu contarei mais adiante.
Naquela época, o comércio da Praça, perto desse casarão nos favorecia e o bonde me levava sem muito esforço ao meu colégio - mesmo acontecera com meu pai. Havia um cinema chamado “Cine METRO” bem como outros dois, na mesma Praça. No Centro do Rio, havia o segundo Cine METRO e em Copacabana o terceiro. Com isso, dizíamos que a Guanabara – na época - tinha apenas, em sentido figurado, “três metros. Já onde passaríamos a morar, somente seguindo rua acima, podíamos encontrar a Praça do Largo do Machado. “Pois bem. Assim que os móveis foram montados em meu novo quarto, procurei um lugar bem escondidinho, dentro do armário embutido e ali depositei minha preciosidade.

Entre a preocupação de estudar e me formar para não depender futuramente de ninguém, só após meus vinte e seis anos é que resolvi abrir o diário. Levou tempos, eu sei, mas, por tantos afazeres, quase o esqueci. Minha mãe, certa vez, ao entrar em meu quarto sem minha permissão – pois eu passei a me isolar - viu um dos livros em minha mão, mas, não deu importâncias ao que viu.. Ainda permanecia fechado a cadeado e as cartas, apesar da minha aguçada curiosidade, - logo em se tratando do que guardava – o achado permaneceu intocável. Não abri nenhum envelope tampouco o Diário, pois, entendia estar adentrando ao coração de alguém. Se estavam guardadas as considerava um segredo. Mas, e se houvesse algo comprometedor e que nunca fora revelado? Isto me passou pela cabeça, durante os anos de estudo e nos pouquíssimos tempos que tinha para pensar no diário.
Eu estava de férias escolares. Havia passado nos exames para o vestibular e esperava pelo Ingresso na Faculdade. Deveria estudar Filosofia. Assim, num dia chuvoso e frio, após fechar a janela do quarto que se descortinava para a bela paisagem que surpreendeu a todos nos anos sessenta, pelas mãos dos inovadores Engenheiros e do Magnífico Paisagista, denominado Aterro do Flamengo, eu resolvi romper os minúsculos cadeados. Eu não sabia qual era o primeiro. Era, justamente o terceiro do amarrado. E minha curiosidade me fez buscar a última página e lá estava a numeração final, seguindo suas anotações comprometedoras, atestando a continuação do segundo livro.

Nada revelado por inteiro. Eram palavras em que a autora, deixava, a quem fosse lê-los, divagando em conclusões.
O primeiro capítulo havia apenas o comentário dos seus doze anos, todos em folhas de papel almaço. Eram várias e não pertenciam ao diário. Eu comecei a ler, como sendo “as revelações de sua infância” e fui entendendo o porque das poucas revelações do cotidiano. É claro que, em cada diário de apenas trinta folhas, não caberia tanto documentário, ainda mais em manuscrito.

DOCUMENTÁRIOS APENSADOS EM PAPEL ALMAÇO NO DIÁRIO DE NATÁLIA.

Primeiras linhas – As Revelações, em separado, que de tão dobradas, as amareladas cores produzidas pelo tempo, começavam a envolvê-las por inteiro.

“- Depois dos meus dez anos, descobri que minha inteligência sobressaia às demais amiguinhas de escola... Ouvia os elogios da mestra a qual apontava para mim, seu olhar, como lança; e foi mais de uma vez – percebi. Claro que devo ressaltar com garbo o elogio, afinal, tratava-se de mim mesma... mas não era muito boa na matéria “matemática”. Para isso, estudava a tabuada à noite, no intuito de poder sonhar, vendo-me no sonho como a primeira da classe, na matéria. Firmava-me nesse engano. Acordava e tentava repetir a de “sete” e não me lembrava de nada; mas, tirava boas notas em Português. A Mestra da matéria, dona de um voz estridente a qual penetrava fundo, às vezes me olhava de esguelha, mas eu pouco lhe dava atenção.
Nasci com um dom de mãos inquietas. Desenhava tudo. Qualquer coisa que via eu passava para o papel em branco, usando sempre o lápis preto e quando necessário, coloria a figura, mas, por diversas vezes era chamada a atenção pelos gastos desnecessários. Mamãe, minha querida deusa, eu já havia retratado seu rosto muitas vezes e de várias posições. Ela se sentia orgulhosa por essa dádiva a que eu chamo dom, desde pequena. Na escola, eu sempre me dirigia ao quadro negro, antes de começar a aula para desenhar coisas de minha imaginação. Os colegas e as amigas ficavam admirados quando aparecia um rosto de algum deles ou uma paisagem local. Era muito elogiada. Mas também tinha outro dom; - se é que se possa enquadrar a uma pessoa que enumera tudo o que vê -, de dom. Pois é, eu vivia contando tudo que meus olhos viam e que se repetiam. Pingos d'águas que caiam no chão quando eu me debruçava na janela para ver a chuva e os latidos de “Sultão” - meu cachorrinho alegre que o passei para o papel e não sei a que fim deu. Ele era o guardião do quintal; com seu latido, anunciava quem se aproximava do portão. Eu contava os miados do meu gato quando se enroscava em minhas pernas pedindo comida; meus passos, da Escola até minha casa; os tantos pulos nas brincadeiras de “pula corda” até senti-la roçar nas minhas pernas, parando em seguida. Eu contava tudo. Contei as contas do meu rosário; as tabuas das portas de minha casa; as tantas e quantas vezes o bem te vi, nas grimpas de uma árvore decidia anunciar sua participação no que via... ou que supunha ver. As vezes, enquanto contava, pintava o que via. Nada escapava dos meus olhos de lince na contagem daquilo que se movia. Impressionava-me o brilho das estrelas nas noites claras; elas não se moviam, mesmo assim, eu as contava e ficava, as vezes, de dentro de meu quarto, janela aberta, apreciando um pedaço do céu estrelado. Sobre a cama, recostada ao travesseiro, eu começava a contar todas as que se apresentavam dentro daquele majestoso quadrado; mas, a medida em que permanecia contando-as, apareciam outras mais e, certa noite, exortada pela beleza do céu pontilhado, vendo a lua navegando com o passar das ralas nuvens, perdi oi sono e vi uma enorme estrela brilhando, única no céu. Minha imaginação voou para muito distante. Eu nunca havia imaginado quão belo era o céu da madrugada. No outro dia, a noite, vislumbrada com o que havia visto, quis repetir a dose de emoção, mas, acabei dormindo. Minha boneca, a que meu Papai Noel me havia presenteado aos oito anos, tinha um defeito enorme. Fui a causadora do desastre. Seu olho esquerdo eu o havia afundado para dentro de sua cabeça oca pelo meu dedinho inconsequente. Mamãe só mostrou a meu pai, quatro meses depois do acontecido. Fiquei esperando pela repreensão quanto a reparação ao meu erro. Eu a havia escondido. E eu contei ansiosamente os dias, como se a contagem fosse diminuir o que seria o meu castigo. Mamãe escondeu de mim o resultado da conversa o que me deixou mais apreensiva. A todo instante em que passava por meu pai, eu arregalava o olho, de medo e contava os minutos de sua parada a me olhar, supondo a observação sobre o acontecido, mas, nada acontecia. Ou caiu no esquecimento ou eles me puniram com a ausência de outras bonecas, como presentes nos Natais que se seguiram. Ganhava roupas, sapatos, livros, mas, bonecas, nunca mais. E o relógio de pêndulo a um canto da antessala o qual cumprimentava a todos os visitantes... Pois então! Esse móvel, alto, super envernizado, além de sustentar a máquina do aparelho, metia medo. Seu pêndulo movia-se de um canto à outro num ritmo extremamente cadenciado. Eu aproveitava para ficar contando seus movimentos. Já o havia retratado várias vezes. Da última vez, conferi detalhes os quais passaram despercebidos a uma jovem eufórica. Só meu avô, com seu ar distinto, possuía um relógio de bolso. Eu o havia visto apenas uma vez e pronto. Foi o bastante para reproduzir, no meu caderno de desenho escolar esse avozinho, com seus cabelos grisalhos e o bigode sombreando o lábio superior, consultando seu relógio que dava inveja. Mas o relógio de pêndulos... eu contava seu precioso vai e vêm, sem precisar que os segundos, já haviam sido contados antes de mim, pelos minutos; que os minutos, haviam sido contados pelas horas; que as horas, haviam sido contadas pelos dias; que os dias, haviam sido contados pelas semanas; que as semanas, já haviam sido contadas pelos meses; que os meses, já haviam sido contados pelos anos e que os anos, Ah... os anos! Estes, já haviam sido contados pelos séculos e estes por outros séculos e mais séculos, os quais fugiam à minha capacidade de pensar. Então percebi que as horas eram infinitas; que não se podia contá-las;que um relógio pede parar; mas outro, com certeza, haveria de dar continuidade ao tempo que continua passando, passando, infinitamente... O que nunca retém seus “tique-taques” são as engrenagens magnificamente construídas em suas caixas para não nos deixar perdidos... no tempo. E quem orquestra essa sinfonia interminável é o próprio já citado, que não tem sentido figurado mas que é abstrato. Ele obedece a ordem natural e não se intimida com nada. Passa, garboso, diante de tudo e de todos e a tudo vence. Fui me acostumando com esse “Senhor” chamado tempo, o qual em nada interfere sendo o responsável por essa engrenagem que move os segundos!
Um dia, eu voltava da escola e encontrei uma senhora bem velhinha. Ela me viu sorrir de algo que não sei bem o quê. Aproximou-se de mim, cautelosa para não me assustar:
- Ah, minha filha! Quando se é jovem, tudo são flores e se rir de tudo e por tudo!”
Virou-me as costas e saiu. Mas eu não debochei dela... Fiquei triste por não atinar, por mais que tentasse, naquela hora, o propósito de sua filosofia. Mas guardei por muito tempo aquela frase.
Eu contava já com minhas doze primaveras. Imaginava ser grande, com boa formação intelectual, trabalhando em uma boa empresa e... Pensava.
“- Estude, minha menina. O futuro é traiçoeiro e despreza os menos favorecidos de sabedoria.”
Não sei por quantas vezes, até me tornar independente, contei mentalmente aquela frase que ouvi certo dia de meu pai. Não me advertiu por entender que eu não gostava de estudar... Advertiu-me por ser um bom pai. Eu deveria ser engenheira. Gostava de desenhar e meu tino englobava altos projetos.”
“Cresci de olho no futuro.” Fiz uma matrícula num curso de datilografia. O professor me apresentou a máquina de escrever e como eu era a única em sua sala de aula, não me surpreendeu o porque de tanta dedicação a sua nova aluna. Tudo era muito caro na época. Poucas pessoas tinham o privilégio de aprender a datilografar, quanto mais pagar aulas particulares. O professor ficou feliz por eu lhe pagar a primeira aula – era por aulas os pagamentos - vendo meu interesse e a oportunidade de ganhar mais uma aluna, disse-me que, eu só sairia dali, quando lhe apresentasse “x” quantidades de letras por segundos em um só texto. Lembrei-me do relógio. Foi fácil. Eu era esperta e logo aprendi e ele muito me elogiou.
Meu primeiro diploma!”
Quando passei a pintar em telas, as pessoas ficavam impressionadas com minha destreza. As tintas e as telas eram caras e quando alguém me encomendava uma pintura, eu apenas pedia-lhes que me comprassem as tintas e a tela, a qual, não poderia ser muito grande. Eu era uma jovem de mão firme nas pinceladas, consciente nas coisas que via e com bom censo para reproduzir um pedido, quer fosse o retrato do pedinte ou algo sobre natureza morta.

ROBERTA

Ah! É por isso que minha senil avozinha, lá, no velho casarão, quando tirava o dia para contar as baixelas de prata, repetia várias vezes. Eu ainda não sabia o porquê, e ela ficava enfezada quando esquecia a contagem. Retornava a exercer sua crítica sobre o desvelo a quem lhe ajudava anos a fio, imputando-lhe a responsabilidade pelo que supunha estar ausente, mas que, na verdade, pelo total de anos já vividos, a deixava com os neurônios à flor da pele com o decorrente esquecimento sobre o que já havia contado. Sua fiel secretária, bem mais jovem que ela, já sabia e pouco falava. Ia pegando as taças junto com alguns enfeites de prata, repondo-os nos lugres, enquanto minha avozinha a observava e os tirava dos lugares que lhes foram indicados, por ela mesma, ha muitos tempos atrás. Era uma construção de “eu ponho porque tu mesma o designastes; eu tiro, porque sou a dona da casa” e com isso, amofinava-se porque sua locomoção só era possível com os amparos dessa cuidadora; assim sendo, mesmo a contra gosto, buscava consolo a um canto da sala, onde passava horas e horas apreciando um enorme quadro que representava uma floresta, tela esta que lhe havia dado o título de melhor pintura do ano de mil novecentos e setenta, numa badalada exposição em uma das salas do prédio da Academia Brasileira de Letras, na época, no Passeio Publico da Guanabara. A mania de contar as coisas a acompanhara até a morte. Certa vez vi sua auxiliar chorando. Perguntei-lhe o porquê e ela respondeu-me dizendo estar triste pelas contagens. Depois, olhou-me fundo nos olhos e perguntou-me: “Será que Dona Natália acha que roubo as peças de prata e por isso as conta vez em quando?” A pergunta me fez ficar calada e Mamãe logo interveio acalmando a pobre mulher. Caiu na rotina aquele põe e tira e tira e põe sobre os móveis consumando assim fortes sintomas de demência, o que a fez tomar vários remédios e as longas consultas médicas.

Os manuscritos dos papéis pautados, bem dobrados, num total de seis, perfazendo vinte laudas, chegaram ao fim. Eu os havia lido em dois dias, com calma, interrompendo a leitura, apenas para as refeições ou enquanto dormia.
Quando abri o diário, sua inicial página me fez compreender o porquê das folhas avulsas. Ela começara a contar a partir dos seus dezesseis anos. O Diário era nada mais nada menos que uma continuação dos manuscritos nas folhas pautadas. E já começava como se seguissem as linhas anteriores. Fiquei pensando: E se fossem separados – folhas pautadas e diário? Mas o fato real era o diário. Esse sim, revelava coisas importantes e assim dizia:

ABRINDO OS DIÁRIOS

“- Nem bem havia completado meus dezessete anos, conheci meu futuro marido. Depois me perguntei: Porquê tanto estudo? Porquê normalista, se fui proibida, por ele, após o casamento, de lecionar?
Aquilo me deixou triste. Pronto. Eu estava acorrentada a um homem, cuja maneira de pensar era completamente diferente da minha. Conversei com minha mãe e ela não pode me dar um conselho a altura do que eu necessitava, pois, deveria primeiro passar o acontecido a meu pai e só depois receberia sua avaliação. Como era um pai que eu conhecia bem, voltei para a casa de meu marido, sem nenhuma esperança do apoio de meu pai, sobre o que necessitava. A casa, era de meu sogro. Gentilmente nos hospedara, decerto, para não ficar longe do filho único. O quarto era bem perto do seu, e, atravessando uma saleta, já estávamos na sala de refeições. Era ali os nossos possíveis encontros; sempre na hora do almoço e jantares. Foi curto nosso namoro. O conheci no colégio. Dava pouca importância ao seu charme, mas, fui cair direitinho em sua rede amorosa. Quando atinei, já estávamos noivos e com o casamento marcado para dezembro. Parecia que minha vida seria livre. Me desapegar da barra da saia de minha mãe e livrar-me dos confrontos com meu Pai, era o que eu mais queria. Não que o detestasse, mas, porque era um homem de ideias extremadas e conflitantes aos meus pensamentos de liberdade, exigindo de mim, pinturas menos obscenas e até mesmo rasgando algumas telas... Estava sempre contra, no que se dizia, portanto, respeito e moral da casa. Ledo engano meu! Melhor seria ter ouvido minha querida mãe. “- não se case, menina... não se case!” Mas o que estava feito eu jamais conseguiria consertar, mesmo porque, sempre ouvi dizer sobre as águas que passam por debaixo das pontes - jamais retornam.”

NATÁLIA

Sobre a contagem, entendi; era um passatempo dela. As pinturas, também um passatempo; mas, o que ela quis dizer sobre as águas? Vovó, além de pintar bem, mantinha em sua casa, vários quadros, de outros artistas com os quais ela se relacionava. Já a conheci idosa e recebendo seus amigos. Eram visitas e mais visitas as tardes de domingos e feriados. Vovó era também um pouco filósofa.
“- As paredes sem quadros, são paredes nuas!”

Era o que dela ouvia, quando algumas vezes havia diálogos entre nós; pois bem, a narrativa, era invejável. Possibilitava-me boa leitura, sem cansar-me as vistas. Entre um suspirar e outro, as vezes eu parava para uma passada das vistas, pela janela, para o aterro do Flamengo; de uma ponta a outra, descortinava-se um grande Parque de Diversões para futuras gerações; Depois, eu voltava à leitura entusiasmada, como sempre, para desvendar o que eu havia conseguido anos atrás:

PRIMEIRO DIÁRIO

“- Pretendia lecionar, porém, o casamento me pegara de surpresa. Meu marido era um homem de família rica. Sua ocupação nos negócios de seu pai, era, viajando para as Capitais, conseguir bom preço de mercadorias entre secos e molhados, além dos cosméticos, na época, relativos a beleza feminina, além de perfumes e utensílios de cozinha. Seu pai havia se firmado nos negócios de Armazéns por longos anos. Na Cidade em que morávamos, ele possuía duas lojas abertas. A primeira fora construída de acordo com suas exigências: Duas portas grandes, bom espaço para expor as mercadorias e outras dependências; uma para escritório e a outra para as excreções fecais e demais necessidades. Já crescera vendo o progresso do pai, um Senhor alto, cabelos lisos e que beirava seus quarenta anos de idade. Eu o havia retratado certa ocasião, no balcão de sua Loja, motivo pelo qual ele advertiu ao filho sobre o desperdício de papeis. Era mais um a querer tolher a necessidade de eu exprimir o que de minha alma se elevava. Eu tinha medo. O filho o obedecia e tinha por ele grande admiração, pois, via em seu pai, grande amargura sobre seu recente passado. Era um homem só. Sua mulher o havia deixado oito anos após seu nascimento. Ninguém soube o porquê. Aparentavam um casal bem sucedidos, católicos, cumpridores de seus deveres para com a Paróquia local e cordiais a todos. Certo dia, sem nada dizer, ela saiu de casa e sumiu. Procurando-a por toda a casa nova, desceu após a rua e “bateu as sete freguesias” como foi comentado à boca miúda pelos mais achegados, à procura da mulher, sem que se pudesse contar sequer uma rusga de desentendimento por tal impensada atitude. Por fim, cansado de tanto buscar por quem saíra com uma única peça de roupa no corpo, ele resolveu contratar uma senhora para cuidar do menino. Desse dia em diante, começava uma nova vida, tanto para ele quanto para seus negócios. A noite, longe da ama seca, o menino chamava pela mãe e ele entrava em desespero. Apesar de ser um homem rude, tendo lá suas maneiras diferentes, nunca digladiava com os fregueses. Olhava o menino e tentava fazê-lo se esquecer de quem o amamentara e o desprezara tão de repente. Para cobrir aquele desprezo para com quem lhe dera a luz e lhe adoçara a boca, o Pai o trazia consigo, no armazém. E ele foi crescendo, estudando e ajudando-o nos afazeres. Mas não gostava do balcão. Assim que fora convocado para o “Tiro do Exército Brasileiro” - contou-me ele - que o possibilitou sair daquela Cidade do Interior e conhecer a Capital, ao voltar, preferiu viajar. Agora, com minha chegada a casa havia ficado mais alegre. Porém, o pai não. Era calado, desconfiado e torceu o nariz quando o filho lhe apresentou pela primeira vez, revelando a seguir que eu seria sua futura esposa. No segundo mês de casada, meu Sogro, que antes me olhara de soslaio, passou a almoçar na mesa conosco, a opinar sobre um possível neto e a convidar-me a descer, posto que, a loja ficava sob um sobrado vistoso, e “sua presença” – disse-me ele - “seria agradável!” Sem muito esforço e tentando esconder uma pontinha de insatisfação, eu admiti a possibilidade, porém, deveria, antes, anunciar ao marido, o qual, pela ponderação, emitiria o consentimento final. Após ouvir a resposta, ele virou-me as costas e desceu sem nada mais dizer. Eu fiquei apreensiva. Comecei a esquivar-me dele e a não lhe responder sobre qualquer pergunta. Todavia, para não magoar o marido, que me viu a nada responder, na sua presença, sobre algo que ele me perguntara, um dia desci as escadas e adentrei a loja. Assim que o homem me viu, estampou-se-lhe no rosto um sorriso largo, como criança que recebe um brinquedo. Mas não permaneci por muito tempo no interior da loja; logo meu marido me conduziu de volta ao andar superior.
Três meses depois do primeiro incidente que muito me desagradara, sobre descer à Loja e até ajudá-lo a receber os fregueses, meu marido viajou para a Cidade mais próxima. Assim que ele me viu sozinha, subiu para o almoço. A cozinheira nos serviu e ao nos deixar a sós, eu quis me levantar, porém, fui detida apor ele. Eu insisti em deixá-lo na mesa, mas senti sobre meu ombro sua mão forte. Depois, ele rodopiou nos calcanhares e olhou-me de frente e me fez uma pergunta um tanto insolente:
- Quando virá o neto?
Após ouvir a pergunta, tentei erguer o corpo. Mas ele permaneceu sustentando-as sobre meus delicados ombros. Foi então que num ímpeto de fúria, ergui o corpo e rompi o passo em direção ao quarto, deixando-o no mesmo lugar a olhar o vazio do assento da cadeira que até então me sustentara. Depois senti remorsos. Talvez, ele quisesse apenas conversar, mas, por que somente na ausência do filho?
Para tanto, permaneci dentro do quarto, por razões óbvias, enclausurada, e, sem sair sequer para lavar uma calcinha. Até as refeições foram servidas pela cozinheira. Ele percebeu meu descontentamento e não mais me importunou. Dois dias depois, aconteceu a notícia sobre o desastre de automóvel com meu marido. Com ele havia seu ajudante, o único que saíra ileso da queda do carro ao passar por uma ponte de madeira. Mas havia também uma mulher que, apesar da confirmação de seu amigo ser uma carona, muito me deixara apreensiva. Tudo aconteceu à tardinha, num dia de domingo, num lugar onde o socorro só lhes foi prestado por moradores da região, duas horas depois. O pai pranteou o filho diante do caixão. Mamãe, rapidamente trouxe-me um costume negro, longo, meio rodado, levemente cintado, e, um chapéu coberto por um véu negro cujas pontas desciam pelas abas as quais me cobriam o rosto. Todavia, de meus olhos rolaram poucas lágrimas. Estava apreensiva quanto a suposta mulher morta. Dias depois, já desconfiada pelos olhares de repúdio ao ato desprezível de meu marido e solidários à minha dor, ouvindo escusos comentários aqui, outro ali, a triste confirmação. Era uma mulher que o acompanhava, vezes sim, vezes não, à viagens mais demoradas. A bendita amante. Apesar de o rio ser raso, ambos haviam morrido por afogamento. Quase inacreditável! Eu estava viúva, morando em num casarão, sob os olhares de um sogro que me assediava vez em quando e que possivelmente o faria, com certeza, em qualquer ocasião, agora que me encontrava sozinha. Para tanto, permaneci dentro do quarto, chorando, sem saber, se, da ausência do esposo ou de sua infidelidade. Com apenas dezoito anos resisti. Passava o tempo lendo alguns livro que mamãe me trazia quando de suas visitas. Não haveria de lhe contar sobre os percalços porque passava com o sogro; ademais, sempre a recebia com um sorriso na boca e sempre cordial, sem dar demonstração do que me acontecia. Sentava-me à mesa com ele, porém, não permitia a ausência da cozinheira até que eu terminasse a refeição. Com o passar dos dias, já se mostrava enfurecido, com uma mulher em sua casa, jovem e que lhe apresentava garras de tigresa. Seu propósito em me perguntar sobre uma possível gravidez esmorecera ante os dias que passavam. Ficava a me olhar como quem pensa: “Terei de aguentar essa estranha aqui em casa, sem herdeiro e de nariz em pé.” Certa noite, numa página de jornal trazida por minha mãe, como embrulho, li o anúncio da oferta de emprego no Rio de Janeiro, só que a data era de um mês atrás. Recortei o pedaço que me seria útil futuramente, e esperei por três meses e após a última menstruação, pois temia sair de casa levando no ventre um embrião, pedi a cozinheira a chave da porta dos fundos. Havia uma escadaria por onde ela passava para adentrar ao andar superior. Sem nada desconfiar, a pobre mulher com um sorriso inocente no canto da boca depositou-a em minha mão. Entrei no quarto, ajeitei algumas roupas numa pequena mala e meus objetos pessoais dentro de uma bolsa antiga que me fora presenteada por minha querida mãe e pós uma hora, ela surpreendeu-se ao me ver, descendo as escadas, abrindo a porta com a chave que ela me entregara, ganhar a rua e, sumir após virar a primeira esquina. Não contava com nenhum centavo no pequeno compartimento que se fechava com zíper no lado esquerdo da bolsa, porém, havia em meu dedo uma grossa aliança e um anel de noivado, cujas garras sustentavam uma preciosa gema. Apesar de ser um homem mais maduro que eu, ele me presenteava com joias e cordões de ouro tendo ouvido de mim, quando ainda noivos, o prazer que sentia em usá-los. Caminhava ofegante, sem direção. Eu queria me afastar o mais rápido possível do lugar de onde eu saíra às pressas. Passei pelo Jardim da Praça, parei e descansei o corpo pois, a mala apesar de poucas coisas, a maleta era pesada. Não sabia para onde ir. Não para minha casa... “O que fazer, meu Deus?” Foi aí que olhei para o céu. De repente, vi uma nuvem grossa passando, rápida, para o lado da Estação Ferroviária. Não perdi tempo. Andei a passos apressados como se acompanhasse a nuvem alvissareira. Subi os degraus e estanquei no patamar da Estação. Ergui os olhos ao quadro de avisos e lá estava escrito:
“O trem parte às quatorze horas, em ponto.”
Tomei um choque. Olhei no pequeno relógio de pulso, marchetado em dourado, e, faltavam cinco minutos para o que eu havia lido como chamado de atenção. Respirei fundo e fui chegando mansamente ao guiché. Lá de dentro, um Senhor de rosto magro me olhou. Acostumado à tantas criaturas que ali chegam, sequer notou meu desespero. Em sua cabeça pendia um quepe de cor cinza, enquanto que nos lados do rosto, sobressaiam-lhes duas impecáveis costeletas que se acoplavam ao pequeno cavanhaque, no queixo. O ato vaidoso do homem, alterava-lhe a característica de um ser humano, tão majestosamente presenteada pela mãe natureza; e esse ato impensado de vaidade alterada, tornava-o um ser irreconhecível. Tive medo em encará-lo. Não queria olhá-lo mais uma vez, mas, tinha que enfrentar a realidade. Ai, escutei uma vozinha dentro de mim, como aviso: “Se você quer fugir, em qualquer lugar que você estiver, vai encontrar coisas assim, ou outras mais... O que você quer?
- Quantas?
Rapidamente contei as vogais e as consoantes que lhe saíram da boca. Não sabia o que dizer. A pergunta dele era “quantas passagens”. Estava sem dinheiro e sem atitude. Algo inédito em minha vida. Nunca havia comprado passagem para que um transporte de massa, como aquela Locomotiva, levasse-me algures; tampouco, nunca saído da cidade. Eu sabia que o trem levava mantimentos e pessoas à plagas distantes, mas, nunca eu. Tremi ante a pergunta que me veio a cabeça. “Como pagar?”
- Uma, por favor! Acho que naquele instante, respondi-lhe num susto.
Como pagar, era a pergunta que não me saia da cabeça. Instintivamente, abri a pequena bolsa, e, com a mão coberta pela luva de seda, retirei, lá do fundo, um cordão de ouro, fino, junto com uma medalhinha de Nossa Senhora “Desatadora dos Nós.” Olhei-a e lhe pedi perdão. Depois, estendi o braço até o fundo do guichê, e, ao abri-la, deixei que os olhos daquele Senhor de quepe e suas inconvenientes costeletas vissem o precioso cordão que brilhava sob a seda da luva, no concavo de minha mão.
Não queria olhar para ele; tinha medo de que sua figura descaracterizada não mais saísse de minha memória; Fechei os olhos e tremi ante o pensamento sobre a não aceitação da joia, pelo dinheiro. Como voltar à casa do sogro? Como lhe explicar o desastroso comportamento? Como? Não precisei, naquele rápido instante que me pareceram uma eternidade, sobre os segundos às tantas perguntas enfileiradas. E eu que contava tudo... Enquanto me debatia em pensamentos, olhando para o chão, olhos fechados, senti um leve puxão na luva. Era a passagem que o homem de quepe e costeletas que lhes alteravam a fisionomia me estendia. Ergui os olhos deixando visível aos de quem me havia favorecido o objeto de desejo, as vertentes lágrimas. Tantas pela perda do cordão e sua medalhinha que não saia de meu pescoço desde os meus quinze anos, presente de Papai, quanto pelo recebimento do tíquete. Não houve discussão; nenhum diálog; tudo foi num passe rápido; e, sem lamentação. Virei as costas e ouvi a advertência do homem:
- Boa viagem, menina... É o terceiro vagão e o trem já vai partir!
Caminhei a passos largos, advertindo-me severamente sobre a suporta ideia e tendenciosos julgamentos antecipados àquele Senhor de costeletas e quem quer que seja, de hora por diante, sem antes conhecer a verdade sobre a criatura. Lamentei por não ter tido tempo de agradecer quem me desejara “boa viagem” e sua advertência. Pedindo à Deus o meu perdão, entrei no vagão e ao me sentar, senti um solavanco para frente e ouvi os gritinhos de crianças vindas lá do fundo, pela surpreendente maneira com que o trem tentava sair do lugar e começar sua trajetória. Dois minutos depois, forcei-me em olhar pela janela a plataforma donde estivera, e, lá estava o sogro, olhando o trem deixar a estação. Um medo grande me invadiu o coração. Teria ele me visto? Poderia parar o trem? Retirei a cabeça da janela não sem antes vê-lo se movimentar; tentado correr. Apreensiva, com sua possível e repentina aparição dentro do vagão, fiquei alguns instantes sentada, coração nas mãos. Depois, vendo o veículo ganhar velocidade, imaginei que, mesmo que corresse, não teria conseguido alcançar o último vagão. Suspirei aliviada. Era a primeira vez em toda a minha vida que me sentia só, mas, gozando da tão pretendida liberdade.
Até chegar ao destino cuja capital me acolheria, receava estar sendo seguida por ele. Não sabia precisar o tempo que havia levado dentro do veículo que a todo instante apitava e soltava fumaça, subindo e descendo serras.
Assim que pus os pés na plataforma da grande Estação Barão de Mauá, senti a diferença. Era complicado o vai e vem de pessoas com vestimentas diferentes. Para onde tantos seguiam apressadamente? Segurei a pequena bolsa temendo ser assaltada, pois, ouvi grandes comentários sobre os transeuntes das Cidades Grandes e entre eles, os punguistas. Olhei para cima e avistei uma nuvem grossa como se anunciasse um chuvisco. O asfalto estava molhado como se antes de minha chegada houvesse chovido e aquela nuvem, seria, portanto, a derradeira. Mas não. Olhando mais para adiante, havia um veículo despejando água em chuveiradas. Aqui, pensei, eles molham as ruas. Por um breve instante esqueci-me da viagem e do presente. Agradeci a Deus por estar longe... Ai foi que percebi que a distância também me separara de minha família; que havia dado um passo além das possibilidades. Mas firmei confiança em mim e olhando para o lado vi um letreiro enorme indicando ser um hotel para viajantes. Era ali. Haveria de me hospedar ali. Atravessei a rua muito desconfiada olhando sempre as pessoas como se elas me olhassem perguntando: – Porque você está sozinha e assustada?
Entrei e foi recebida por uma Senhora simpática. Mas, toda a simpatia – pensei - acabará assim que lhe disser estar sem dinheiro... Meu Deus!
- Quanto é a diária, Senhora? Arrisquei.
Mas ela, olhou-me e sem responder-me poerguntou: - veio de onde, minha filha? E completou a pergunta com uma outra mais sibilante, por ter um timbre de voz igual à da minha antiga professora: - Está sozinha?
As duas perguntas me pegaram de supetão. Como lhe dizer? A qual resposta primeiro? A mulher franziu o rosto. Pronto! Como adivinhara? A simpatia, que fora um cartão de visita já havia se desfeito e eu ainda não lhe havia dito que estava sem numerário.
- Senhora, venho de longe e só tenho essa aliança como garantia. Vou procurar emprego!
A mulher, segurou a joia e olhou-me por alguns instantes; depois, volveu os olhos para a joia na concha de sua mão e a seguir, chamou um Senhor que logo apareceu vindo detrás de uma porta semiaberta. Ele apareceu como se houvesse ouvido nossa conversa ou estivesse alí, a espera de qualquer ordem.
- Sim, Dona Janete!
- Avalie esta aliança; a menina precisa de dinheiro! – disse-lhe, e, a seguir, ordenou-me que me sentasse no sofá de veludo, o qual estava voltado para uma escada em caracol. Nesse instante, uma mulher veio descendo, acompanhada de um homem. Seu vestido longo e rodado, plissado, combinando com sua blusa "tomara que caia" deixou-me envergonhada. Ambos com sorrisos esbanjadores, passaram por mim e ganharam a rua.
Ainda deixando estampado no rosto minha apreensão, esperei por uns minutos a mais e mentalmente fui contando os segundos dos tique-taque do relógio pendurado na parede, como que por enfeite. Ela deu a ordem e também sumiu da sala e alguns minutos depois, o homem apareceu. Parou a espera da Senhora a quem ele chamara de “Janete”. Não demorou muito, ela juntou-se a ele e o mesmo presentou-lhe uma boa soma em dinheiro.
- Tome, minha filha! Sua joia é ouro português; agora ela é minha, mesmo porquê, você não deve mostrar-se para ninguém ser uma mulher casada e ela de nada lhe servirá, porém, aqui, você não poderá ficar porque não é próprio a uma menina da tua classe. Vejo que você está meio apavorada, que não tem ideia do que seja isto aqui e ainda por cima, sozinha, pois não?
- Sim, mas tenho que passar a noite em algum lugar; onde, por favor?
- Já falei com o Senhor Julião. Ele a levará a um hotel respeitoso. Ele sabe bem onde fica. Depois, quando tudo estiver resolvido, você volta aqui para me agradecer; está bem assim? Terminou a frase e já seu braço me conduzia à porta.
Espantada com a quantia chegada tão inesperadamente, enfiei o dinheiro na bolsa e agradeci. Olhei bem os olhos da Senhora e sai novamente para a rua, desta vez, acompanhada pelo Senhor a quem dona Janete chamara Julião, e este, com minha pequena maleta na mão.
Andamos várias quadras; ele na frente e eu o acompanhando; entrando numa rua e saindo noutra, até que chegamos a um Hotel.
Assim que entrei no referido, vi a diferença de classe. O Senhor Julião me esperou ser alojada, depois, olhou-me com certo olhar de piedade, pois apresentava-se para quem fora, pela manhã, tomada de espanto, ser um homem distinto. E no patamar da porta do quarto, com voz macia, anunciou sua volta assim que houvesse uma folguinha, e completou:
- Não andes por “aí” com teu anel a exibi-lo. Deixe-o em algum lugar seguro aqui dentro e não se deixe enganar por pessoas que se apresentem solícitas em ajudá-la, caso ouça seus lamentos. Não se lamente com ninguém, isto provoca as oportunidades. Amanhã... - fez pausa e completou: - amanhã eu volto.
Fechei a porta e resolvi tomar banho. E quando a água caiu sobre meu corpo, foi que senti um leve tremor. Saí depressa. Ao enxugar-me, lembrei-me de que estava sozinha, com pouco dinheiro, numa cidade desconhecida. E por toda a noite chorei a ausência de minha mãe.

Tão pontual quanto severo, ele voltou a me visitar. Eu já estava descontente com ele. Não sabia o que fazer, se sair ou se ficar dentro do quarto. Ai ele chegou. Era meu único conhecido. Quis abraçá-lo, rir e chorar mas sustentei minha ansiedade acompanhada da emoção. Conversamos sentados na antessala de entrada do Hotel.
Nesse dia, pela manhã, já havia decidido minha situação. Levou-me ao Centro da Cidade, rua Senador Dantas. O bonde parou e entramos num prédio enorme. Quando o elevador deu partida, um frio tomou-me por dentro. Todos fumavam. Ele principalmente. Eu não entendia o porquê. Logo entramos em um escritório bem decorado e ele apresentou-me a um Senhor que usava um terno de linho fino e sob o paletó, um colete, apesar do calor sufocante, já pela manhã. Estendeu-me a mão e sorriu dizendo:
- Essa é a sua protegida?
- Com muito gosto, patrão!
Após uma rápida entrevista, eu já estava efetivada em um escritório de Advocacia. Fui apresentada a todos do recinto. Era o meu novo mundo. Ao meio dia eu já estava faminta. Olhava os demais funcionário empenhados em seus afazeres sobre as mesas e recebia papéis para datilografar. Ficaram impressionados com minha destreza em manejar os dedos sobre as letras do teclado. Logo travei diálogo com uma funcionária que aparentava ter a idade de mamãe. Sua mesa de trabalho ficava um tanto à direita. Foi ela quem me levou ao restaurante e fez questão de pagar minha primeira refeição. Fiquei vermelha de vergonha. Foi um almoço rápido. Ela não queria deixar-me sozinha. Ensinou-me como pegar o bonde para voltar, porém, antes das cinco horas, lá estava o Senhor Julião. Como sempre, calmo e obediente. Depois fiquei sabendo sobre sua participação em tudo aquilo e até sobre a senhora e suas atenções para comigo. Tanto ele quanto ela, por algum motivo, eram fieis à sua Patroa, Dona Janete. Quem sabe não serei a terceira? Refletia quanto a prestação da amabilidade.

Quando completei seis meses nesse escritório, apareceu um jovem na repartição. Primeiro, antes de adentrar, usou de charme. Ficou parado na porta do elevador – porta essa que já se abria no meio da repartição – olhou para todas e sorriu. Vestia um terno grená, usava colete e seu sapato brilhava impecavelmente. Contei seus passos até à primeira mesa, onde uma funcionária lhe retribuiu o sorriso. Depois, voltou-se para mim, como que espantado por ver-me. Sorriu. Esperou por minha reciprocidade e como voltei os olhos para o meu trabalho, virou-se e entrou no compartimento anexo, Gabinete do Patrão – Advogado – e sumiu. Pensei várias coisas a respeito dele. Tinha os cabelos lisos, os dentes brancos e com a aparência de uns vinte e seis anos. Ainda vislumbrada com a aparição do jovem, senti um rumor sobre minha nuca. Era a Senhora, minha mais recente amiga. Passou à minha frente e advertiu-me:
- Cuidado. Não se deixe levar por aquele sorriso. Ele é privilegiado... Um “bon-vivant”, filho único do Patrão e já engravidou duas meninas aqui. Tem um bonito carro, está sempre acompanhado de uma ou duas garotas quando aqui vem e, quem cai na sua lábia, se ferra.
Senti um arrepio por toda a espinha dorsal. Logo eu que amargava uma recente e grande decepção com meu marido, não me deixaria cair na armadilha outra vez. No entanto, depois da teatral aparição e o impecável sorriso, sequer olhou-me, tampouco outras vezes que voltara, como quando da primeira vez.

Por esse tempo, entre as idas e vindas do trabalho, um dia passei pelo Correio. Ele estava sempre ali. Eu, pelas preocupações, e, sustentada pela emoção e o dever de superar qualquer obstáculo, nunca que o havia notado. Nesse dia, olhei para suas portas e elas pareciam singelas e convidativas. Senti uma forte pressão no peito e, entrei, impulsionada por uma razão desconhecida. Eu precisava comunicar-me com Mãe. E foi o que fiz. Mandei-lhe um rápida carta, deixando bem claro que não mais voltaria e que tudo estava correndo as mil maravilhas comigo. Rabisquei meu endereço e despedi-me com o pedido de suas bênçãos ao Senhor. Três meses depois, recebi a resposta e dentre as novidades da Pacata, Cidade, a declaração de estar necessitada de uma assinatura em um documento sobre minha pessoa. Como eu não queria voltar, resolvi, na própria empresa em que trabalhava, conversando com minha amiga idosa, redigir uma procuração à ela, outorgando-lhe direitos plenos, já que Papai havia falecido uns meses depois de minha saída. O mesmo advogado que moveu a ação sobre o sepultamento de meu marido, também movera os papéis sobre meus direitos como viúva.
Tempos depois, minha mãe veio me visitar. Com ela, veio uma soma considerável em espécie. Trouxe-a dentro de uma sacola de pano, e quando eu vi o montante, não sabia se ria ou se a advertia sobre o perigo que correra com tantos maços de notas uma sobre a outra.
Saí do Hotel e comprei uma quitinete, simples, em um prédio novo, no Bairro do Flamengo. O Corretor ficou boquiaberto com minha disposição por pagar-lhe em dinheiro vivo. Da porta, podia-se ver a única janela; desta, avistava-se a deslumbrante estátua do Cristo Redentor, de braços abertos a todos que o olhavam. Aquela paisagem me encantou. Mamãe voltou para cuidar de outros documentos. Aos domingos, eu levantava cedo para assistir missa na Igreja do Largo do Machado. Eu tinha respeito a meu Deus e procurava cumprir seus mandamentos. O resto do dia, cantarolava músicas inéditas e deitava-me de frente para a janela, aquecendo minhas pernas cansadas.
Estávamos no ano mil novecentos e quarenta e quatro, quando decidi alugar, nesse imóvel apertado, uma vaga à uma jovem que havia chegado de Minas. Era mais para não me sentir sozinha, dentro dele. O mês, era janeiro. Quando o sol esquentava durante o dia, era certo trovejar e cair um grosso toró (chuva torrencial) à noite. Todas as ruas enchiam e faltava água vez em quando. Logo fiquei sabendo o que ela pretendia. Ingressar no Corpo de Enfermeiras da FEB. Para tanto deveria se inscrever e estudar Enfermagem. Fiquei entusiasmada. Decidi ir com ela até à Sede e lá me escrevi a um curso rápido sobre enfermagem. Pronto. Encontrei para mim, mais uma preocupação desnecessária, eu pensava. Deixava o trabalho, às pressas; pegava o bonde até à Praça Cruz Vermelha; encontrava-me com ela, estudávamos e voltávamos rindo para a nossa apertada Quitinete. Não tínhamos namorados. Contei-lhe sobre minha situação e ela reservou o direito de ficar calada sobre sua estada na Cidade. Depois deixou escorregar alguns episódios e se dizia “moça virgem”. Pretendia casar-se com véu e grinalda mas eu queria mesmo era saber o que seria dela após o término do curso. Só não lhe perguntava; esperava por uma decisão espontânea. De minha parte, estudei muito e ao final do Curso, havia uma indicação entre as alunas – apenas uma – para integrar o corpo de Enfermeiras da FEB. Dado as notas favoráveis sobre o que havia estudado, prestei um concurso, fui aprovada e deixei o Escritório de Advocacia.
Para não ficar totalmente ausente de quem me havia socorrido no momento mais preciso, voltei ao hotel de dona Janete. Esta, ao me ver, sorriu e agradeceu a Deus por eu não ter caído na prostituição. Depois conversei com o Sr Julião e ele resolveu falar sobre a atenção de sua patroa para comigo. “ Certa vez, - confidenciou-me ele - deixara de ajudar a uma menina, igual a você, sem dinheiro e que chegara sozinha. Bem que podia – suspirou ele – mas, a entregou nas mãos de um Gigolô e ele a explorou tanto que ela acabou morrendo de tuberculose. Era uma menina bonita e incauta... Jurou nunca mais cometer tal ato desumano.”
Despedi-me dele, agradecendo o tudo que fizera por mim, dando-lhe um beijo no sulcado rosto. Depois, segui meu destino.
Passei a trabalhar no Hospital e adquiri a Carteira de ENFERMEIRA DA FEB em janeiro de mil novecentos e quarenta e cinco.”

ROBERTA

Já havia lido o necessário a respeito dela. Queria ver o final, mas, segurava minha curiosidade.

SEGUNDO E TERCEIRO DIÁRIO, COM REFERÊNCIA AS CARTAS.

“- Minha amiga, por não haver alcançado sua pretensão, ficou magoada. Deu muito cartaz a um jovem do Exército e esqueceu-se dos estudos.
Todas as enfermeiras viviam ansiosas sobre a expectativa de um possível embarque. Sonhávamos sair do Brasil e sermos úteis no tocante a situação porque passava a Europa: “Seus delírios, suas tristezas, o desamor e a constante corrente de desapego à vida.” Ouvíamos comentários; além de estudarmos enfermagem, empenhávamos em entender um pouco o idioma alemão, algumas palavras necessárias, e, outras, do idioma Italiano.
Assim que embarcamos para a Itália, já os Brasileiros combatiam ferozmente os Alemães. Nosso cumprimento de ação era tratar dos feridos simples e outros, portadores de ferimentos graves. Na proa do navio, rabisquei inúmeros papeis, tentando retratar o que estava vivendo. Uma amiga ficava impressionada quanto minha destreza. Ficava com os rascunhos e quando chegamos, o que vi, também os retratei numa cartolina, mas, não sei a que fim levaram. Tiramos fotografias dos muitos lugares que passamos. Eu era uma mulher alta, um metro e setenta e dois de altura; forte; e, consciente dos meus deveres. O inverno rigoroso nos pegou de surpresa. Nossos agasalhos não eram apropriados nem estavam a altura de nos proteger do frio. Havia também o extravio de correspondência e naquele Hospital de Campo, mais próximo à Linha de Frente – numa região denominada Pavana-Valdibura, estávamos, praticamente esquecidas. Mas tínhamos sempre um sorriso nos lábios, fortalecendo o moral dos enfermos.
O trabalho dependia e muito das companheiras. Havíamos sido convocadas depois de as Americanas estarem ali, há já dois anos, o que era um bom tempo, admitíamos. Mas nos prestamos com dignidade e inteligência. Logo nos adaptamos às técnicas de primeiros socorros, enfermagem de campo e adquirimos mais conhecimentos.
E foi lá que conheci um prisioneiro, Oficial Alemão. Havia sido escoltado pelos soldados que guarneciam a “Estrada 47” os quais enfrentaram o frio de 30G nos Apeninos Italianos.
Eles o trouxeram para ser remanejado para um outro local. Estava sobre uma cama e quando me aproximei, ele virou o rosto. Tratei-o com muito zelo, pois não o considerava um inimigo e sim, um ser humano. Cuidei de seu ferimento. Certa vez, olhei-o sobre a cama. Ele ressonava. Foi assim que num pedaço simples de papel o retratei. Logo que ele despertou, mostrei-lhe. Ele sorriu. Não havia em seus olhos azuis a cólera de que havíamos ouvido falar, anteriormente, sobre os inimigos. Pelos dias que passei ali, notei que ele escondia algo em suas vestes. Certa vez, enquanto ele dormia, notei que em sua mão havia um pequeno livro. Era uma Minúscula Bíblia. Com muito custo a retirei dele. Estava em seu idioma. Limpei-a e a devolvi. Afeiçoei-me a ele. Disseram-me que, assim que ele se recuperasse, deveria ser entregue à escolta. Pensando depressa sobre sua saída, passei a subornar os meus serviços. Retirava a atadura do ferimento e fazia verter o sangue, mesmo vendo-o gemer sem saber o porque do motivo de tanta crueldade. Levava o dedo à boca para que ele não gritasse. Refazia o trabalho sobre a ferida na perna esquerda e ele continuava sobre a cama por mais uns dias. Certa noite, lhe beijei. Pouco falava, até porque, se dirigisse sua palavra a mim, eu não entenderia nada. Olhava-me com certa admiração. Notei, depois, que eram olhares da paixão. Nossos corações estavam enamorados. E foi assim. Depois de alguns anos de ausência sexual, eu me entreguei àquele homem de olhos azuis, alto e cabelos castanhos que, sequer fez perguntas sobre o meu incorreto comportamento. Mas, tivemos um contato tão forte e tão caloroso que naquele momento não caberia a mim, tampouco a ele, falarmos da importância do nosso ato de amor. Escrevi em sua Bíblia meu nome e o endereço no Brasil, terminando com as palavras “I love Yul”. Eu estava certa de que ele saberia traduzi-las.
No vigésimo terceiro dia de sua permanência, não consegui segurá-lo, tampouco argumentar sobre a ferida aberta ou uma possível infecção em sua perna. Ele foi remanejado dali, pela escolta. Nunca mais o vi. Três meses depois, quando explodiu a certeza de que a Guerra havia terminado, saímos à rua, juntamo-nos ao povo e aos soldados e festejamos a vitória dos aliados. Um mês depois, foi tudo muito rápido, eu estava voltando para o Brasil. Quando aqui cheguei, eu estava grávida. Me desliguei da Enfermagem e disposta a enfrentar todos os abalos que possivelmente viessem a acontecer sobre minha conduta de além mar, resolvi criar sozinha o fruto daquele amor.
Quando cheguei, minha mãe já estava a minha espera, na Quitinete, com minha amiga, e esta, com sua barriga de três meses. Rimos muito quando nos encontramos. Meu filho nasceu louro, olhos azuis, comprido e magro.

Os poucos meses que passei longe do Brasil, foi o bastante para que meu sogro sofresse um acidente. Havia caído da escada. A queda fora por haver se irritado com a empregada a qual me havia dado fuga. Teve um traumatismo craniano, sofreu muito e morreu. Mamãe e o advogado venderam tudo que eu havia herdado. Partiu para o rio, cheia da grana. Foi assim que compramos uma casa na Tijuca, não muito distante da Praça Saens Peña.
Estudei e me formei em Arquitetura. Entusiasmada com a possibilidade de adquirir mais conhecimentos sobre o que havia estudado, aventurei-me para um lugar mais distante, chamado “Planalto Central”. A linda Cidade que estava sendo construída, praticamente a braços humanos, me recebeu com alegria. Três anos depois, voltava à Guanabara, disposta a enfrentar, com meu filho que ficara com minha mãe, as agressões de uma Cidade que emergia dos escombros. Abriam-se ruas, demoliam-se casas velhas e prédios eram erguidos  como quem emborca umn copo sobre a mesa e as praças surgiam como por encanto. Assim criei meu filho.”

ROBERTA

Terminei o Ginásio e pretendia ingressar no “Madureza”. Um certo Curso paralelo ao que estudava. Tempos depois, prestei vestibular, passei e comecei a estudar com afinco. Vovó falecera meses após nossa chegada ao Apartamento. Dizia que era muito alto; que não havia jardim; que havia uma poeirada danada, pois, estavam ampliando toda a margem do pequeno mar do Flamengo. As coisas foram piorando e como ela já estava com a idade avançada, não resistiu. Quando das primeiras férias escolares da Faculdade, em meio a um tumulto estudantil, papai recomendou-me cautela. Não queria ver sua filha querida envolvida com o movimento estudantil. Foi assim que comecei a investigar as cartas que estavam guardadas.

A primeira carta que abri, era um texto de meia folha. Em manuscrito, a grafia era linda. As vogais, bem como as consoantes, eram redondas distanciando e muito de alguém com pouca instrução. O primeiro tradutor que contratei, a traduziu com muita facilidade.

- Por favor, quero que o Senhor a traduza “ipsis litteris”.
O homem balançou a cabeça, obediente, não sei se pela ordem latina ou por minha aceitação ao preço estabelecido por ele.

PRIMEIRA CARTA:

“Por esta, Senhorita, espero encontrá-la, com as graças do Altíssimo, bem de saúde. Somente neste ano de mil novecentos e quarenta e sete é que tudo ficou esclarecido a meu respeito. Fui julgado, porém, não condenado. Escrevo, todavia, sem ter ideia de que esta missiva vá direto ao seu endereço; mas, é o mesmo que deixastes na página em branco na mine Bíblia, sob o pequeno coração e sua declaração de amor.
Por favor, caso não lhe seja embaraçoso, gostaria de receber sua resposta.
Confiante no Altíssimo, alicerço-me nos Provérbios 25,v 25 do Livro Sagrado: “como água fresca para a alma cansada, tais são as boas novas vindas da terra distante”. Assim, espeço-me, sem saber como afastar a ansiedade que invade todo o meu ser, por sua caríssima resposta”

SEGUNDA CARTA
ROBERTA

Li e reli a tradução várias vezes. Queria encontrar algo que me aproximasse ainda mais do acontecido, antes mesmo de abrir a segunda carta. Mas, somente poderia entender bem se conseguisse ler as demais. Dias depois, novamente busquei ajuda do mesmo tradutor.

“Dresden, setembro de mil novecentos e quarenta e sete.
Meu coração explodiu de alegria quando recebi sua carta. Elevei os olhos para os céus e agradeci a Deus por sua misericórdia. Eu acredito nos anjos. Você foi o anjo bom no momento mais atribulado de minha vida. Sempre obedeci as Leis de Deus, por isso, consegui sobreviver as grandes batalhas, as quais, fui obrigado a enfrentá-las. Estudei em Roma no ano de mil novecentos e trinta e seis e quando voltei à Alemanha, sem nenhuma perspectiva de trabalho, ingressei no Partido Nazista, o qual julguei ser uma oportunidade perfeita; todavia tudo passou de mentiras fantasiosas; mas, como o País passava por grandes dificuldades sobre emprego admiti ser o obvio. Logo fui nomeado e pelos meus talentos, passei a decifrar códigos e outros serviços secretos. Quando a Alemanha já estava prestes a ser derrotada, fui mandado para a Itália. Era uma missão secreta; com passaporte civil. Eu já estava cansado de tantas atrocidades, daí, deixei-me ser preso. Antes, porém, fui ferido na perna, como bem sabe a jovem enfermeira. Ninguém mais acreditava em mais nada; estávamos fracos, perdidos e a todo instante ouvia-se o alarido de que, a guerra havia chegado ao fim. Foi quando naquela feliz tarde a conheci. Sou professor de Química tentando reconstruir aquilo que minhas mãos (como outras mais) destruíram.
Assim está escrito no Livro Sagrado: “O julgamento será sem misericórdia para quem tiver agido sem misericórdia. A misericórdia triunfa sobre o julgamento.” Tiago Cap 2, v 13.
Agradeço e muito suas palavras e o salmo 103, especialmente no versículo 3. Alegro-me por sua compreensão e espero que na próxima missiva, revele-me o segredo que tens para me contar.
Despeço-me com o coração cheio de esperança por nova missiva.”

Outras cartas foram abertas e traduzidas e ele sempre citando trechos da Bíblia. Até que numa delas, revelou estar passando por momentos difíceis de saúde. Havia buscado ajuda dos médicos e o mal crescia mês a mês. Foi numa das penúltimas que o tradutor, em vez de traduzir o que havia lido, sugeriu-me que eu lesse o trecho “Mateus, cap 5, v 5 e do Livro da Sabedoria, todo o capítulo 5.
Não era um Pastor. Havia aprendido com a vida e tentava passar seus conhecimentos à quem lhe dera seu amor. Mas penitenciava-se por haver descoberto, tardiamente, ser Pai de um Menino de nome Roberto, aqui no Brasil.
Pronto. Quando o tradutor leu estas palavras, ai fiquei sabendo do grande segredo de minha querida avó. Eu era neta de um estrangeiro, mais precisamente de um Alemão.
Corri depressa para que o tradutor lesse a derradeira. E ele, lendo-a, confirmou-me o que sempre atinei. Talvez, nem meu Pai soubera de quem era filho. Sempre ouvi um comentário às escondidas de que seu Pai (meu avô) havia morrido no desastre. Grande fora a bagunça na vida secreta dessa Senhora Arquiteta e consagrada pela crítica, grande pintora!
Nesta última missiva, ele fez menção do Livro Sagrado, a Filipense, Cap 2 v 3 e Efésios, Cap 6 e seu v 11 até o final.
Como era a última carta, deduzi que, o grande amor da vida de minha avó, havia morrido. Por isso que eu me admirava no espelho contemplando meus olhos azuis e tentando responder à pergunta: De quem seriam?
                           = = = = =

Solano Brum
Enviado por Solano Brum em 29/01/2018
Alterado em 28/10/2022
Comentários