DE VOLTA A CASA GRANDE - 2. CAP.
Dos quatro presentes, sou o único mais desgarrado da família. Minha avó, irmã desses três solteirões idosos e obesos, não aguentou a pressão sofrida por eles. Teve uma gravidez não programada; ocultou o pai da criança, - no caso, minha mãe, e padeceu sozinha com o passar dos meses. Mas eles não gostavam de serem chamados de solteirões. Soava como um incômodo aos ouvidos dos três. No entanto, não queriam partir o elo do qual haviam criado. Daí, a irmã contestou e apresentou-lhes o namorado – com o consentimento da avó. Sentiram-se humilhados. Traídos que foram, queriam que a irmã permanecesse como eles, uma solteirona. Tanto repudiaram o rapaz que sua presença já os incomodava. Ele não mais apareceu, e, propiciou a ela, com certa rusga de revolta, temendo a idade avançada, engravidar-se de um homem que mal acabara de conhecer. Nunca mulher alguma havia rondado qualquer uma das camas de seus irmãos. Com o consentimento de sua avó, minha tetravó, mandou que sua filha fosse estudar na cidade, onde conheceu meu pai e por lá se casou. A pobre coitada deixara esta vida, bem antes do tão falado e nunca realizado “Inventário de partilha” dos bens que herdara. Havia outros, mas, todos, no entanto, já vendidos; e, sem a mão de ferro da avó, tudo foi minguando, envolvidos que foram pela insídia da ganancia. Estavam justamente reunidos para discutirem o que lhes restava, porém, dependiam dos trâmites legais e isso, só poderia ser acionado por um advogado competente. O certo é que já não acreditavam em mais ninguém. Inclusive no seu único sobrinho bisneto, por consideração.
Percebi ao ouvir suas vozes baixas, atitude da qual me levava a crer que não queriam ser ouvidos por mim. Falavam quase que em sussurros. Então, porque me chamaram até aqui, com tanta urgência? - Rondava em meus pensamentos essas perguntas. Permaneci afastado não muito distante. Dividiam bens que ainda seriam divididos a cada um de nós. Mas dividiam entre eles, na surdina... Eu os olhava com certa tristeza e carinho - Esses tios-bisavôs que nada tinham de direito senão por merecimento, queriam suas partes de imediato. Mas o inventário nunca havia sido desenrolado por ninguém da família; e a urgência, era pelo fato de estarem endividados. Mas, quem ficaria com a sua avó? Ouvi, certa vez, à boca miúda, algo sobre:
- Devemos deixá-la em um asilo?
Não sei quem aventou a hipótese. Sobre o comentário, fiz alusão, porém, nenhum dos três se pronunciou. A cada um que indaguei ouvi a resposta:
- Não fui eu! - Disse-me o mais idoso dos três.
- Nada comentei! - Reportou-me severamente quem havia sofrido um mal súbito e que se dia esquecer as coisas... Mas, falava-me de tudo... do antes e do depois com muita clareza. E por fim, o mais jovem dos três, acusou-me com sua voz sonora:
- Isso é da sua imaginação, sobrinho; não dissemos nada!
- É. Concordara o primeiro ao ouvir. E diante de tantas negações, retruquei admitindo o que o último havia dito:
- Talvez eu tenha imaginado “coisas”!
Ao me aproximar dos reunidos, pararam de confabular e olharam-me como se eu fosse um estranho. Do mesmo modo como entrei, atravessei a sala a passos largos. Acompanharam-me com as faces voltadas para mim, passo a passo, degrau por degrau, desde a subida da escada, até minha silhueta sumir do alcance dos seus olhos quando da minha entrada no quarto.
Meu retorno a este casarão, - único por sinal de pé, dentre as tantas outras propriedades que já foram vendidas ou até demolidas pela má conservação -, deixava-me com um gosto amargo na boca. Na pequena cidade, algumas dessas construções demolidas, seus espaços estavam alugados para estacionamentos. A cidade crescia muito. Eu ficava sabendo por eles e às vezes, descobria o que os mesmos escondiam. Três herdeiros, todos solteiros e usuários de bens que minguava a cada instante com o passar dos tempos. O morro fora vendido e repartido. O documento que eles usaram para todas transações até então, fora de uma antiga procuração passada à minha mãe, que era a procuradora de sua bisavó, a qual já havia perdido o valor e gerava grandes problemas por estarem usando-a para fins ilícitos. Com um ”jeitinho” aqui e outro ali, vendiam o que lhes interessavam de imediato pelo pagamento em espécie, mas, tudo escasseava. O que por ventura adquiriam em dinheiro vivo, como num pesse de mágicas, escorriam por suas seis mãos, como algo valioso que escorre por crivos sem obedecer critérios. O que o avô adquirira ao longo dos anos, e o que sua querida avó conservou até quanto pode, escoava, gradativamente e sem nenhuma defesa por esses três cabeçudos incompetentes.
Quando cheguei, pela manhã, o mais idoso descansava seu corpo pesado em uma cadeira de vime. Ela era tão antiga quanto o casarão! Ali, na soleira da porta, seu queixo estava sobre as duas mãos entrelaçadas, as quais se apoiavam num ferro comprido o qual se remove as brasas da lareira. Nunca, em tempo algum, o havia visto em suas mãos. Nem para uma coisa, nem para outra. O certo é que ele jamais removera uma brasa sequer de dentro da lareira da sala. Ali, - além de pensativo – passava-me a impressão de que usaria o objeto em suas mãos, mas, quando? Somente havia em seu olhar perdido para o monte à sua frente, uma grande desmotivação. Era as construções na parte mais baixa do morro. Usava o ferro alongado, naquele instante, como apoio ao queixo, e, quem sabe, como um terceiro pé, às escondidas, recusando, pela arrogância a saltar dos olhos, a bengala que tanta firmeza lhe daria, caso a usasse. O mesmo castigo imposto à sua avó, agora, recai sobre ele. Porém, ele sabe o que esta acontecendo. O porquê de sua solidão. Ela, coitada, não. Ao vê-lo, tentei decifrar o que parecia aflorar-lhe na epiderme do rosto.
“ - Quais pensamentos atormentam a pobre cabeça desse decrépito Senhor?”
Queria até entender sobre suas condições de vida, mas, pelo que já presenciei anteriormente nas muitas vezes em que os visitei, é que a decadência financeira e mal administrada caiu-lhes sobre os ombros, como um inexorável peso de montanhas.
Herdeiros por direito, mas, pela insensatez, sem o serem de fato. Tudo pertencia à avó, que era mãe de uma única filha, como ela mesma dizia “- que Deus a tenha!” - que, junto com seu marido, tentando atravessar o rio num dia chuvoso, não perceberam o volume da água aumentando consideravelmente. Há uns bons quilômetros serra acima, ouviu-se um estrondo e as águas desceram velozmente. Foi um ato impensado. Falava-se muito dessas “cabeças de água” que em grande velocidade derrubava tudo a sua frente rio abaixo. Sempre chovia, mas, nunca oferecia risco, já que a balsa, medindo seis por quatro metros de largura, forte e reforçada, suportava, - às vezes - o rápido e crescente nível das águas. Presa a uma corda de embira, muito grossa de lado a lado do pequeno estreito; puxada pelos passantes, levava de três a quatro minutos a travessia, mas, já no meio do leito, acontecera a tragédia. Com vários sacos de mantimentos, além dos dois cavalos e os três burros, não suportou o peso, tampouco o desequilíbrio dos animais. O balseiro gritava para que segurassem na corda:
- Segurem na corda... Caso a barca vire, a corda vai salvar você... Segurem na corda!
E se deu como sua boca profetizou - De repente, o homem rodopiou no ar e caiu na água e foi tragado logo após. Eles permaneceram sobre a balsa, porém, desgovernada, bateu nas pedras e foi destroçada. Os esforços foram limitados pelo cansaço. As mãos agarravam ao que podiam, porém, ela rodou rio abaixo e a seguir, todos foram tragados pelas águas. Uma légua abaixo, o riacho desembocava em outro ainda mais volumoso. Consequentemente, nunca mais foram encontrados. Não se ouviu mais os gritos de desespero. Apenas o silêncio da natureza, o cantar dos pássaros e o roncar das águas passando pelas pedras, era o canto notório que se ouviu a seguir. Na margem esquerda do riacho, haviam mais três cavalos amarrados, esperando a volta do barqueiro. O boato correu as léguas e os três meninos e a menina ficaram aos cuidados da avó, crescendo ao seu lado e ao mesmo tempo, depois de adultos, surrupiando, vagarosamente o que ela havia herdado e conquistado após a morte do esposo.
Comigo, aconteceu diferente. Cresci com a família de meu pai e longe de minha querida tetravó, a qual, resignada que fora, levou ao pé da letra a nova incumbência que o destino lhe colocara nas mãos, após o trágico acidente que envolveu sua filha e seu genro. No princípio, agarrou-se aos netos, chorou muito ao sofrer o baque da perda. Assim que os parentes souberam do acidente, se achegaram. Não permitiu nenhum parente de seu sogro ciscar na sua fazenda; não permitiu tampouco os parentes dos genro e expulsou todos que quiseram dar pitaco no que fazer de ora por diante.
O pai e seu irmão, muito menos. Havia presenciado tempos atrás, antes da morte de seu marido, uma forte discussão sobre vendas de terras. Desta forma, se afastaram por longos anos e prometeram nunca mais pisarem na sua propriedade.
Ficou ao lado do marido, mesmo sabendo que contrariava sua mãe que nunca a visitara, pelas imposições de seu pai. Foi nesta época que ela ao desmontar de seu cavalo, juntou-se ao seu marido e notou que sua estatura estava além da sua. Depois dos vinte e dois anos, crescera ainda mais. Espichou consideravelmente pela herança genética dos pais.
E logo ele e seu irmão, que ao longo de uma década, só visitaram-na cinco anos após, e, mesmo assim, permaneceram por dois dias apenas. Chegaram, viram tudo, especularam por tudo e como foram poucas as respostas que ouviram, viraram-lhe as costas e só voltaram para as altercações sobre as terras. Como não lograram nenhum êxito na porfia, partiram desejando que eles engolissem o tal pedaço. Por assim dizer, não compareceram ao enterro do cunhado. Nem o irmão, tão generoso quanto predileto... Nem mesmo ele chegara para apoio... Agora, cinco anos depois, esta, “por visita de fechar o caixão de sua filha e seu marido, em ato simbólico”, não os queria por perto, tampouco opiniões sobre o que fazer de sua vida de ora por diante. Tudo estava fora de seus planos. Outra vez, além das poucas respostas, também o visível desinteresse por qualquer coisa, mesmo o de seu pai e seu irmão, quanto mais por parte do Sogro. Queria ver sua querida mãe, mas, como ela não apareceu e já sabia o porquê, “- mulher não participa...” fez pouca questão de suas presenças. Presenciaram sua atividade em como lidar com a fazenda e dar ordens aos ajudantes – como assim os chamava - isso ela aprendera, como aprendeu a conviver com seu marido, sem nunca haver feito objeção. E era isso que ela pretendia mostrar-lhes, mesmo caloura no assunto. Aprendeu a ser uma mulher de opinião. Mas, o que viram, infringia as tradições. Nunca houvera mulher com voz de comando naquela época, porém, ela transgredia a tudo. Sem ousarem contestações, forçados a assentirem o que viam, montaram em seus burros e deram-lhe as costas, e, desta vez, sem dar-lhe tempos de enviar a sua mãe, qualquer recado. As mágoas se acumulavam a cada vez que se lembrava de seu irmão e porque não, de seu pai, culminando com o lampejo na lembrança de sua querida mãe. Tinha que ser severa com os contratados. Eu sempre soube de suas severas ordens. Não permitia desordens e faltas graves, e, dispensava um operário com a mesma facilidade com que contratava outro.
Por diversas vezes espantou a tiros de espingarda alguns pretendentes indesejáveis. Aos seus queridos netos, a proteção, os estudos, e, na lavoura, o direito aos quatro. A cada um, funções importantes na administração. Porém, após a morte da Irmã mais jovem, tudo lhes favoreceu. Apossaram-se até mesmo da parte que não lhes cabia. Na ausência da herdeira - minha mãe -, a qual fora estudar na Cidade, o trio tomou posse de tudo. A avó contestou, porém, a voz de comando já não lhes causava arrepios. Ela os tinha em alto conceito e seu condão, era apreciado por eles, que, por ironia do destino, seria - alicerçada numa vã opinião - no futuro, sua real segurança. A divisão, fora por decisão dela. Por ser uma área muito extensa, nada lhes faltava, porém, o tempo evoluiu e o que era distante passou a ser perto por demais. As casas dos empregados foram erguidas ao longo do riacho e a estrada ficou mais aberta. Tornara-se a matriarcal, embora não lhes desse nenhum nome. Porém, exercia autoridade preponderante à sua maneira. Mandou construir um pontilhão, mais seguro, com boa madeira e que passava até carros pesados. Na inauguração da mesma, chorou ao se lembrar da morte da filha e dos demais, e sorriu após, pela aposentadoria da barcaça. Houve progressos... Jamais deixara outro pano cobrir seu corpo, senão, o preto, e, nenhuma tesoura cortou-lhe as louríssimas madeixas. Todos a obedeciam, mas, no transcorrer do tempo, essa autoridade foi sendo posta de lado. Os três netos, usavam e abusavam dos bens e nunca deram satisfações aos parentes paternos de minha avó, tampouco os de minha mãe.
Quais pensamentos se passavam naquela cabeça oca e sem herdeiros de “per si”, - como os demais irmãos -, apoiada naquele ferro?
O ponteiro marcava quatorze horas e meia, e já o sol daquela tarde de setembro, gradativamente tornava o recinto mais frio. Do lado de fora, ouviam-se gritos e algumas palavras ameaçadoras vindas lá de dentro. Nada anormal. Falavam e gesticulavam, depois entravam em seus quartos para dormirem e nada resolviam. Era habitual. Justamente porque queriam vender... Vender algum bem e não dispunham do capital necessário para contratar um bom advogado. E por serem orgulhosos, a nada me pediam. Por minha vez, nunca lhes ofereci qualquer ajuda. Eu já sabia que aquela reunião seria tão vaga quanto às anteriores. Mas, convocado que fui, resolvi apresentar-me como um “distante membro família”. Herança é um caso sério, ainda mais se houver desacordo entre as partes e o responsável, escolhido que fora, não movera sequer uma página sobre o tal, há muitos anos passados. O certo é que, ao faltar dinheiro, vendiam um bom pedaço da terra, gastavam em carros de luxo e por não serem habilitados, pagavam bem aos motoristas e despejavam dinheiro vivo – tempos atrás – em diversões, mas, mulher... alguma mulher, nunca ninguém as viu por perto. Quando acabava o dinheiro, voltava tudo à estaca zero. Sempre me enviavam uma parte que eles julgavam justa, - isso não nego - não sei se por honestidade ou medo. Nunca houve necessidade para tal. Tempos atrás, abri mão verbalmente de algumas vendas, mas, eles fizeram questão de depositar na minha conta bancária, qualquer quantia. Mesmo que irrisória, após qualquer transação de venda.
Eu havia estudado em bons Colégios o que para eles foi um espanto quando lhes apresentei o Diploma. Meu trabalho é em equipe, porém, não movo um dedo sobre esse caso de família. E eles, por saberem das minhas possibilidades, jamais me pediram qualquer opinião. Ao contrário, pensam até que desconheço tais fatos.
Deixo tudo correr sob seus livres arbítrios porque sei que, dia mais, dia menos, estarei à frente de tudo que restar... Se restar alguma coisa, é claro!
Ouço muitos comentários a meu respeito. Inclusive sobre o carro que viram quando aqui cheguei. É importado, por isso, fui alvo de crítica: “- Quem possui um carro assim, deve ter muito para gastar!” Ouvi e nada respondi. É bem certo que, posso comprar o que bem me aprouver e não ficaria lhes devendo nenhuma satisfação do que fazer ou não com meu patrimônio. Sempre fui um homem honesto e cumpridor dos meus deveres. Se, viveram apartados de mim sem acompanharem o meu progresso, não acho justo fazerem comentários de minha situação financeira. Algumas vezes telefonam dizendo: “Depositamos tal quantia...” Apenas agradeço. Mas, nunca lhes perguntei- apesar de ter conhecimento por alto - onde e como gastam suas reduzidas economias.
Junto com o caseiro, aproveitei para visitar vários lugares pelas cercanias. Enquanto apreciava o lindo pomar que se estendia por detrás do casarão, senti o desagradável incômodo de um argueiro vindo não sei de onde, cair dentro de meu olho esquerdo. Acomodado, parecia não querer sair. Lembrei-me de quando criança... O mesmo havia acontecido. Corri até minha tetravó e ela, calmamente mandou-me fechar o olho. Obedeci. Então ela começou uma reza à Santa Luzia:
“-Santa Luzia passou por aqui, com seu cavalinho comendo capim...”
Por três vezes repetiu a frase e por três vezes fez cruzes com o dedo polegar à frente do olho dolorido. A lágrima umedeceu o globo ocular. Então ela passou o avental por sob o olho umedecido e sorriu dizendo:
“- Pronto, o cisco foi retirado!”
O caseiro ficou parado, à minha espera. Eu havia feito à mesma oração e repetido o mesmo sinal à frente de meu olho. Olhei para o relógio e já passavam das dezessete horas. Enquanto voltávamos, observando alguma coisa aqui, outra ali ou as mais distantes, sempre conversando com o caseiro, não mais senti o minúsculo objeto no olho, porém, mais tarde, olhando no espelho, lá estava a vermelhidão, comprovando haver sido importunado, – não sei por quantos tempos – por um corpo estranho. Ela sempre me curava com seus remédios de ervas nas diversas vezes em que eu e minha mãe vínhamos visitá-la.
A governanta acercou-se de mim, anunciando-me o jantar. Um costume antigo. Era servido, próximo às dezoito horas. Eu estava faminto. Depois de lavar as mãos na pequena pia esmaltada da saleta, aproximei-me da mesa. A seguir, sentei-me na única cadeira vazia, como parte da família. O mais idoso tinha setenta e dois anos. Naquele instante, seus olhos mostraram-se espantados por ver-me. Quando da minha infância, eles me tratavam com carinho. Fui crescendo e a ternura de seus corações passou à hostilidade. Depois, porque passei seis anos na Europa e mais dois anos ininterruptos na Faculdade, concluo que isso lhes tenha afetado ainda mais a cessação da hostilidade. Mas bastou eu aparecer e pronto. Compreendo a situação. Estão velhinhos. Todos sofrem de males diferentes. Somente o mais idoso acumula o mal da micção. Mamãe, pelo pouco tempo em que me foi dado permanecer a seu lado, após a morte repentina de sua mãe, tentou torná-los sensíveis. Mas, também veio a falecer, com um fulminante ataque cardíaco. Após sua morte tão prematura, senti-me num ambiente hostil por parte deles, quando da penúltima vez em que os visitei junto com meu pai. A visita foi mais pela saudade que eu sentia de minha tetravó. Meu pai partiu desta, quase que dois meses depois, deixando-me só. Assim, tudo se apagou, virando poeira. Somente minha tetravó ficara firme, de pé, única mulher, única herdeira, única em tudo, portanto. Ela sim, é que gostava de mim, por isso, fui deixando-os sós, passando longos tempos sem visitá-los. Mesmo porque, não estava ao meu alcance, pois eu vivia aos cuidados de tias e tios por parte de papai. Os estudos exigiam mais e mais minha dedicação. Após a formatura, as obrigações triplicaram. Tenho um pouco de culpa, e, portanto, me penitencio.
O jantar fora servido e, pelo fato de eu, dentre os três, não ter participado da refeição rala – era costume servir a sopa antes dos jantares todas as vezes que eles visitavam aquele casarão - fui severamente criticado. Olharam-me com reprovação. Ainda mais criticado, por me haver demorado enquanto jantava, pois, é um costume antigo triturar os alimentos vagarosamente. Por tal fato, a sobremesa fora servida com um pequeno atraso. Apenas olharam o meu defeito, enquanto que, na verdade, não perceberam que eram observados por mim, quanto aos modos de se alimentarem. Não podiam comer carnes, principalmente as suínas. Doces, nem pensar.; e, em cada prato da sopa insípida por recomendações médicas, o saleiro subiu e desceu várias vezes, num ato incomum e descortês. A governanta sabia, mas, eles exigiam e ela obedecia. No entanto, foi o que mais fizeram em demasia e mui apressadamente naquela tarde. Moravam em uma única casa na Cidade mais próxima. Haviam duas governantas na casa enorme e de teto baixo, única de pé. As duas mulheres obedeciam aos três e eram ressarcidas com a permanência na casa. Mas nunca lhes faltavam dinheiro. Pouco exigiam e atendiam cordialmente aos visitantes, interessados nas possíveis compras a imóveis. Os três velhinhos eram convidados a participarem dos eventos, e, se orgulhavam de serem sócios fundadores de dois clubes famosos e antigos. Suas presenças eram imprescindíveis. Mas, estavam sem nenhum saldo em suas contas bancárias e as ausências aos Clubes, ficava por conta da obesidade, culminando com as difíceis locomoções. Não tinham carros. Era difícil contratar um táxi. Motivo: Queriam entrar num mesmo veículo por falta de dinheiro. Qualquer motorista os recusava pelo excesso de peso e o tamanho dos três. Isso lhes trazia grandes aborrecimentos. Apenas as aparências e o grande prestígio os mantinham na alta estima da sociedade da pacata Cidade. Nunca houvera pregressos em suas vidas. Sempre viveram sob a barra da saia da avó, pelo que, de certo modo, tenha sido ela, - mal comparando -, sem se dar conta do que fazia, em parte, a maior culpada. Mas, como não estou aqui para julgar, apenas olho sem contestar coisa alguma. Agora, estavam sós, - encrencados com as divisões de alguns dos bens que restam e eu, à espera de algum fato novo. Depois do jantar, um deles se pós de pé, e, cortando a conversa pela metade, sem nenhum “por que”, claudicante, se arrastou pesadamente, abriu a porta do quarto e entrou, deixando os outros dois plantados na sala. Nem mesmo eles entenderam a atitude do mais idoso. Entreolharam-se espantados. Enquanto eu dava meia-volta, compreendendo que a partir daquele instante cada um procuraria seu compartimento, aproximei-me de minha tetravó. Ela permanecia sentada em sua cadeira de balanço, com seu xales de pontas douradas sobre os ombros, as quais desciam até seu vazio peito. Assemelhava-se aos meus olhos incrédulos, a uma bela flor que a há tempos murchara, mas, que ainda perfumava todo o ambiente tão antigo quanto ela. Tentei beijar sua mão, todavia, o quadro era tão perfeito, que, respeitando o silêncio, permaneci por alguns segundos à sua frente, olhando-a. Ela parecia estar distante... Tão distante que tive a impressão de que havia entrado num túnel ao volver os olhos para baixo.
Os caseiros estavam perto dela e num gesto carinhoso, moveram a cadeira em direção ao quarto, a qual foi deslizando porta adentro. Despedi-me em voz alta e passei pela porta arcada, a mesma que, pela manhã, por excelência do instante, me foi permitido encontrar um dos tios. Não quis pernoitar no casarão. No outro dia, desci a Serra e voltei à minha vida normal, com a promessa de não mais atendê-los, a menos que a exigência fosse caso excepcional.
No entanto, um mês depois, a notícia trágica. Minha querida tetravó estava morta. O comunicado pegou-me de surpresa o que fez meu motorista empreender maior velocidade na subida da Serra. Porém, cheguei com atraso, alheio à minha vontade. Mas, estavam à minha espera. Aquilo me deixou triste e um tanto magoado, pois, ouvi dizer que ela balbuciara meu nome, duas ou mais vezes. Mas, eram três velhinhos senis! Inclusive, soube que, apenas um deles teria assistido a morte de sua querida avó, justo em uma de suas visitas de rotina ao casarão.
As pessoas faziam fila para chegar perto do esquife que se achava bem acomodado sobre dois cavaletes dourados. O centro do grande salão de um dos Clubes da cidade parecia bordado a ouro. Pessoas que a conheceram em vida; amigos dos amigos da família, bem como outros e demais curiosos, o que me deixou, deveras, feliz por alguns segundos. Todavia, triste por seu passamento. Justificava a presença de todos, sua conduta ilibada ao longo dos anos e a importante convivência aos mais chegados.
Todos estavam agitados pelo acontecimento notório. Lá estava a última dentre todas as mulheres de sua época; que era conhecida como a Mulher de “mão de ferro” e desbravadora portanto. Permaneci por alguns instantes de pé, enquanto os três continuavam sentados em uma poltrona para três lugares, tão antiga quanto o Clube. Lá estava ela espremidinha dentro daquele caixão de luxo. Parecia à mesma. Faltava apenas abrir os olhos, os quais, de minha lembrança, eram intensamente verdes e tudo seria como antes. Mas, não. Ela continuava imóvel e seus três netos, (filhos por adoção) - três príncipes -, recebendo as condolências dos que por eles passavam. Um Senhor, trajando terno de linho branco, barba ruiva e braços alongados, discursava e gesticulava para os presentes, passando os papéis já lidos, de uma mão para a outra. Cautelosamente fui me posicionando por detrás dos três, e, de pé, apenas movia a cabeça, para quem me olhava ou me passava os pêsames. Um único jovem entre os três anciãos, a despeito de estar à suas retaguardas, tumultuava, talvez, a cabeça de quem não me conhecia. Havia parentes dessa falecida Senhora, porém, nenhum deles se motivaram a chegar perto ou sequer foram convidados. A cidade crescera e afastei-me de muitos conhecidos, mas, aquele era o meu lugar, bem como não conhecia nenhum parente, mesmo que longínquo e tentando situar-me do acontecimento, quase nada ouvi do orador. Algumas mulheres mais conhecidas, não tão idosas quanto ela, choravam. Lembrei-me das “Carpideiras”. Minha tetravó contou-me a história das mulheres que eram pagas para prantearem em velórios. Tantos anos faz e agora, a lembrança é nítida e com alegria. Coisas antigas!
Após o translado e as cerimônias no cemitério, voltei ao casarão acompanhado dos três que se posicionaram na parte de trás do carro. Ainda bem que era um “Chevrolé Impala/58” esbanjando vigor, o que não seria possível tal incumbência caso não fosse possante. Quando chegamos ao casarão, nenhum dos três me olhou. Saltaram do carro, subiram os pequenos degraus da frente, e, cada um deles sentou-se em suas respectivas poltronas na grande sala, e ficaram ali, afundados no vão que lhes cabia, como se esperassem por uma reunião. Adentrei por último, e, como era costume vê-los justamente ali, sentados, pouco me importou a sombra de dúvidas. Mas, entre o começar uma conversa indesejável sobre o acontecido, e, o de entrar no quarto, melhor seria a segunda decisão. E foi o que fiz. Todavia, à noite, fui obrigado a sentar-me à mesa, participando do jantar. Não pude arrancar nenhuma palavra dos três. Eu esperava um comentário sobre o fato. Mas nada. Estavam calados e incomunicáveis. Esperei pela iniciação da conversa, mas, nenhum deles passou-me um raciocínio lógico que apresentasse uma conclusão, pelo menos, a de estarmos ali, reunidos. Os três estavam apreensivos e calados. O mais idoso alimentou-se da sopa rala e dispensou o jantar. Os outros dois estavam assustados. Esperei que o primeiro se levantasse. Eu sabia que os demais o seguiriam. E foi o que aconteceu. Levantaram-se e foram se deitar, sem, contudo, expressarem quaisquer palavras. Eu argumentei com os caseiros sobre suas refeições de ora por diante. Não era uma imposição. É claro que eles passariam sobre as recomendações. Mas, argumentei assim mesmo. A noite passou quase que despercebida, embora estivesse iluminada. Observei o “caminho de Santiago”, num céu completamente estrelado, coisa que na Cidade, pouco se via. Vasculhei o espaço tentando encontrar uma possível estrela, mesmo que pequena e nova... Queria chamá-la de “Avozinha”... Mas todas já se compunham há milhares de anos naquele céu pontilhado de astros reluzentes e a minha, por certo indicada, estaria dentro do aglomerado luminoso. Ao me deitar, antigas recordações aproveitaram para encher aquele quarto e me assombrarem. O mesmo quarto que eu dormia com minha mãe e que dormi, pela última vez, com meu pai... E, entre uma lembrança e outra, adormeci. No outro dia, pela manhã, após o café, começou um bate-boca. Ao entrarem em debates concernentes aos espólios, o que me parecia “esbulho”, um deles, justamente o mais novo que sofrera um derrame tempos atrás, não resistiu. Não deu tempo nem de colocá-lo no carro para o socorro devido. O mais impressionante é que morrera olhando para mim, obrigando o mais velho a lhe fechar as pálpebras. Mais um enterro para eu acompanhar! E esse novo velório, parecia não ter fim! Outra vez fiquei por detrás dos dois tios, quando poderia sentar-me na poltrona, pois, sobrava lugar, mas, os dois se espalharam e eu fiquei ouvindo do mesmo Senhor, - agora, de terno cinza -, mais um interminável discurso, culminando com mais um dia que eu deveria permanecer naquele casarão. Após o sepultamento, voltamos. Tentando tirar proveito da ocasião, procurei reunir os dois restantes e acalmá-los, pois, “Como exemplo” o acontecido deveria trazer-lhes a paz... Comentei atendendo ao meu espírito altruísta. Mas, minha boa intenção foi imediatamente descartada. Depois do enterro, os velhinhos discutiram um assunto o qual não sei bem como começou, daí, não mais querendo ver o que poderia acontecer, sai de perto, entrei no carro e desci a Serra, voltando à Capital. Três meses depois, voltei ao mesmo local para enterrar os outros dois restantes. O mais idoso morrera de susto, pela morte repentina do irmão. Dissera-me o caseiro que, ao receberem um comunicado, ficaram indignados. Depois, li o documento. Tratava-se de um arresto expedido por um Juiz, o qual açulou discórdia entre os dois. Apreensão judicial de bens... O primeiro morreu sufocado com um gole de água. A caneca caiu longe de sua mão. O segundo, pelo susto ao ver o irmão tombar pesadamente no assoalho da sala. A notícia lhes pareceu como a pancada de um pesado martelo. O martelo da discórdia... O mesmo atingiu as duas cabeças, simultaneamente. A fúria; a ambição; o desejo de possuírem mais do que não podiam, lhes havia trazido a fatalidade final.
Presente à dupla cerimônia fúnebre, portanto, não fui alvo da surpresa de quem entrava e se encaminhava até a minha pessoa, cumprimentando-me e se dirigindo aos dois esquifes, como que para uma última olhadela. O espanto era o falecimento inesperado. O mesmo Clube, as mesmas cadeiras, o mesmo orador... Trajava desta vez, uma calça listrada de gabardine; e, provavelmente, sobre os magros ombros, os quais ostentavam a todos presentes, o peso dos anos, um vistoso paletó de linho branco. A minha frente, sua figura mais pareia um espectro onde apenas sua boca se movia para a fluidez das vozes. Desta vez, não discursara alto, tampouco fora expansivo e sequer apontou para os caixões. No primeiro, - o da Avozinha -, discursou aos presentes sobre seu modo de vida, sua garra de mulher guerreira e porque não, mãe que superara os ditames da vida; arrancou aplausos demorados – No segundo, na presença dos familiares, eu e os dois irmãos, revelou, com poucas palavras, a famélica razão de estarem endividados, o que provocara descontentamento dos ouvintes. Quase não foi aplaudido; e, no último, não tão eloquente fora como o das outras vezes, talvez por que fora advertido por alguém, o que de certa forma, arrancou poucas e discretas palmas de quem estava mais próximo.
Cumprimentado por todos, recebendo as condolências, permaneci sentado, e, aos olhos de quem me via, o verdadeiro príncipe, herdeiro de tudo, ouvindo mais um discurso, desta vez, resumido em rápidas e sábias palavras. O discursante era proprietário de um pequeno jornal, e sua coluna era lida por muitos moradores e os mais antigos da Cidade.
Pelo passamento de minha querida avozinha, ele havia gasto, em excesso, os louvores em uma pequena história sobre sua extensa passagem por esta vida. Dias depois, a mesma coluna fora pela ausência dentre nós, do irmão mais novo, e, agora, sabe-se lá o que escreverá.
Eu olhava as pessoas e suas faces. As mesmas que marcaram presenças nos dois anteriores, agora, ali estavam e podia-se ver, sem nenhuma discrepância, a cor do espanto e o horror pelo fato das tantas mortes sucessivas. Mas, não me deixei levar pelo que via. Afinal, tais acontecimentos já esbarravam nos extremos da vida. A avó que partiu e que em vida tanto lhes ofereceu ajuda, não quis ficar sozinha. Levou consigo seus filhos netos. De minha parte, fiz questão de acompanhar o enterro. Até mesmo dentro do Campo Santo algumas pessoas discretamente me olhavam, mas, não falavam comigo. Voltei à casa grande, junto com a governanta e o caseiro. A porta arcada foi aberta por ela, mas, deixou-me entrar sozinho. Um silêncio profundo permanecia no interior sala. A cadeira era a única a embelezar o canto vazio. A sacada, que minha querida tetravó pensava se esconder de todos, mas, que na verdade, qualquer um poderia vê-la muito bem, estava fechada. Quadros e objetos sobre os móveis... Tudo estava bem conservados. Tempos atrás, - arteiro que era - eu descia, sentado à moda cavalinho pelo corrimão da escada, sempre advertido severamente por minha mãe. Dentro desse vazio, uma visão de outrora: - Uma criança, descendo às escondidas, no envernizado corrimão da escada; a um mover da cabeça, sentado à mesa, junto com os demais da casa; e, firmando um pouco mais a lembrança, no segundo piso, minha mãe no patamar da escada a procurar-me... Eu, paparicado por todos e desprezado depois. Para nos lembrar de fatos antigos, fechamos os olhos, diferente da realidade – esta, nós a vemos de olhos abertos!
- Meu Deus... Que silêncio! Ninguém ouviu como ouvi, nesta sala, tantas discussões e discórdias! Agora, esse silêncio profundo é tão igual ao que percebi nos olhos de minha tetravó, - mal comparando, é claro -, com o espargir do verde penetrante e luminoso, quando da última vez em que ela me fitara!
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Solano Brum